JOÃO GABRIEL, THIAGO RESENDE, JULIA CHAIB E VICTORIA AZEVEDO
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (30) o texto-base do projeto de lei do Marco Temporal, em mais uma vitória da bancada ruralista ante a agenda ambiental do governo do presidente Lula (PT).
O texto-base do projeto foi aprovado por 283 a 155, sob críticas da Frente Parlamentar Indígena e em meio a protestos de lideranças dos povos em Brasília e de outras cidades. O governo orientou contra a aprovação do texto, “respeitando a pluralidade”. O PSB, partido da base de Lula, liberou sua bancada. Os deputados ainda precisam votar destaques ao texto, que, depois, segue para o Senado.
O projeto foi eleito como prioridade da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária) nas últimas semanas, após a vitória no relatório da medida provisória dos ministérios -que desidratou as pastas de Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas).
A tese do marco, defendida pela FPA, determina que as terras indígenas devem se restringir à área ocupada pelos povos na data da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Os indígenas refutam a ideia e argumentam que, pela Constituição, têm direito a seus territórios originais, não limitados por uma determinada data.
Na segunda-feira (29) e nesta terça (30) a Frente Parlamentar Indígena tentou convencer o relator do texto, Arthur Maia (União Brasil-BA) a fazer alterações no texto, em especial em dois artigos: um que define a política de contato a povos isolados e outro que diz que a demarcação pode ser revista em caso de “alteração dos traços culturais” da comunidade.
Maia, no entanto, não acatou essas mudanças propostas e manteve o projeto como estava no seu relatório.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, o projeto de lei do marco temporal avançou como uma estratégia do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para se antecipar ao julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre este tema. Na Corte, a tendência é que a tese seja refutada.
Articuladores do governo tentaram adiar a votação desta terça ao propor que seja criado um grupo entre o Palácio do Planalto, Congresso e Supremo.
Líderes da bancada ruralista acreditam que essa ideia poderá funcionar para que haja um consenso e fim da disputa. Apesar disso, eles rejeitaram a sugestão de que a votação do projeto do marco temporal fosse adiada até a discussão do grupo dos três Poderes.
Na visão de parlamentares ligados ao agronegócio, a Câmara precisava avançar com o projeto para evitar que o Supremo consolide uma tese contrária aos ruralistas.
A Frente Parlamentar da Agropecuária vê na aprovação da proposta um sinal ao Supremo de que ele não deve prosseguir com a sua votação.
“Espero que o Supremo tenha a sensibilidade de [ver] que o processo está andando aqui na Casa, e, andando aqui na Casa, não tem sentido o Supremo cumprir um papel que é da Câmara”, afirmou Arthur Maia antes da votação.
“[O acordo] não andou, a maioria expressa sua vontade de acordo com o texto que reza e garante o que o STF decidiu lá atrás, na demarcação da Raposa Serra do Sol”, afirmou Lira antes da votação.
Dentro do governo, porém, a ideia de se criar um grupo com o Congresso e STF não é unanimidade. Integrantes do governo dizem que o Ministério dos Povos Indígenas procurou a Secretaria de Relações Institucionais (responsável pela articulação política) para tentar convencer o Planalto de recuar do plano de criação do grupo de três Poderes. Na visão de membros dos Povos Indígenas, a principal aposta para garantir a derrubada da tese ruralista é a votação no Supremo. A urgência ao projeto de lei do marco temporal foi aprovada na última quarta (24), quando sequer o governo orientou de forma contrária à proposta -liberou sua bancada para cada deputado escolher como votar.
O PROJETO
O texto aprovado pela Câmara, que ainda pode ser alterado, diz que “é nula a demarcação que não atenda aos preceitos estabelecidos nesta lei”.
O trecho vem sendo criticado por indígenas por abrir espaço para que áreas já homologadas sejam anuladas, o que pode causar a expulsão de povos de seus territórios e aumenta o risco de conflito.
O texto também possibilita a indenização ao antigo proprietário de terras demarcadas, algo que hoje não acontece, veda a ampliação de territórios já delimitados e diz que mesmo os processos em andamento devem se adequar ao marco -ou seja, devem passar a considerar a área ocupada em 1988.
A proposta ainda abre uma brecha para que terras demarcadas sejam retomadas pela União, “em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo”.
O texto do marco temporal, originalmente, não tratava da tese, mas sim transferia para o Poder Legislativo a prerrogativa de demarcação dos territórios.
A ele foram apensadas (juntadas) propostas que incluem, além do marco, a possibilidade de realização de empreendimentos e exploração de recursos naturais das terras. A versão atual, que ainda pode ser alterada, cria um capítulo sobre “uso e gestão das terras indígenas”.
Segundo críticos da proposta apontam que o trecho abre brecha para empreendimentos como estradas e linhas de energia ou hidrelétricas em terras indígenas.
A proposta permite ainda que esses empreendimentos sejam “implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”. E prevê que, para atividades econômicas, “inclusive agrossilvipastoris”, será “admitida a cooperação e contratação de terceiros não indígenas”.
Segundo o entendimento da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), o projeto “também autoriza qualquer pessoa a questionar procedimentos demarcatórios em todas as fases do processo (inclusive os territórios já homologados), flexibiliza a política indigenista do não contato com os povos indígenas em situação de isolamento voluntário e reformula conceitos constitucionais da política indigenista”.
Já o ISA (Instituto Socioambiental) diz que a proposta é “uma das mais graves ameaças aos povos indígenas do Brasil” e “poderá inviabilizar demarcações de terras indígenas”.
ENTENDA O MARCO TEMPORAL
**A tese**
O marco temporal determina que a demarcação dos territórios indígenas deve respeitar a área ocupada pelos povos na promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988.
**A crítica**
Os movimentos indígenas discordam da tese e afirmam que, em 1988, seus territórios já haviam sido alvos de séculos de violência e destruição de aldeias; portanto, entendem que as terras que são de direito dos povos não devem ser balizadas por uma data.
**Ruralistas**
Defendem a tese sob argumento de que dará mais segurança jurídica ao agronegócio.
**O STF**
O Supremo pautou para 7 de junho a retomada do julgamento que vai decidir se a tese é válida ou não. Até agora, o ministro e relator Edson Fachin votou contra o marco. O ministro Kassio Nunes Marques, a favor.
**O projeto de lei**
Paralelamente, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que institui o marco temporal. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), tenta aprovar o texto antes do julgamento do STF.