BRUNO LUCCA E FERNANDA MENA


SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao reconhecer a existência de racismo estrutural no Brasil e determinar a adoção de medidas para enfrentar violações de direitos da população negra, o STF (Supremo Tribunal Federal) colocou o país num grupo restrito de democracias que já emitiram decisão sobre o tema.
Em locais como Canadá, África do Sul e Colômbia, cortes superiores reconhecem há décadas que determinados grupos raciais ou étnicos enfrentam desvantagens históricas e sistêmicas, justificando políticas diferenciadas e a adoção de medidas estatais específicas.
O conceito de discriminação estrutural tem variantes, sendo encaixado na realidade de cada nação. Basicamente, ele significa “a crença de que a ideia de raça sustenta desigualdades sociais, econômicas e políticas”, afirma Lia Schucman, professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e pesquisadora da temática racial.
Para ela, há uma forma simples de explicar o motivo de haver uma estrutura excludente no Brasil. É a constatação de que, se tudo acontecer dentro do que se entende como normalidade no país, o resultado será desfavorável às pessoas negras. “Se eu abrir uma vaga para CEO de uma empresa e não instituir ação afirmativa, vai entrar um branco. Se o mesmo ocorrer num concurso para professor universitário, o resultado provavelmente será o mesmo.” Dessa forma, as instituições e o modo como a sociedade atua perpetuariam o racismo por inércia.
O raciocínio é o mesmo feito pela ministra da igualdade racial, Anielle Franco. “A história da população negra no Brasil é marcada pelos nefastos reflexos da escravização, que levou a uma trajetória de desigualdades sistêmicas, perpetuando desvantagens e barreiras em todos os campos da vida. São oportunidades de emprego e estudo, por exemplo, que geralmente não estão disponíveis para pessoas negras na mesma amplitude que para as pessoas brancas”, diz ela à reportagem.
Essa realidade não é fruto de casos isolados de discriminação, segue a ministra, mas sim, de um racismo enraizado nas estruturas da sociedade.
A crença na existência de um alicerce racista é compartilhada por outros países. No Canadá, a Suprema Corte consolidou o entendimento de que a igualdade constitucional deve ser substantiva, e não apenas formal. A jurisprudência reconhece que normas aparentemente neutras, como citar que todos têm direitos iguais, podem perpetuar desigualdades estruturais, especialmente contra populações negras e indígenas.
Já a Corte Constitucional da África do Sul, criada após o fim do apartheid, atua a partir de uma Constituição que reconhece expressamente o legado de exclusão racial. Suas decisões partem do pressuposto de que o Estado tem o dever de desmontar estruturas herdadas do regime segregacionista, legitimando políticas de ação afirmativa e redistribuição.
Na Colômbia, a Justiça também admite a existência de discriminação histórica contra comunidades afrodescendentes, sobretudo em temas ligados a território, deslocamento forçado e acesso a políticas públicas. Em alguns julgamentos, o tribunal superior declarou a existência de omissão estatal, obrigando o governo a adotar medidas amplas para corrigir violações sistemáticas de direitos.
A ação julgada pelo STF também discutia se há omissão do Estado na violação de direitos da população negra no Brasil, traduzido na linguagem jurídica como “estado de coisas inconstitucional”.
O julgamento começou com o voto de Luiz Fux, relator do caso no STF, em novembro. Ele se manifestou a favor da declaração do “estado de coisas inconstitucional”, ou seja, pelo reconhecimento de que há violação sistemática dos direitos fundamentais da população negra do país.
Na sessão desta quinta-feira (18), ele reajustou seu voto, optando pela presunção do racismo como alicerce da sociedade brasileira, mas negando que as instituições sejam culpadas por isso. Votaram no mesmo sentido os ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.
Essa corrente entendeu haver violações graves, mas que já há um conjunto de medidas adotadas pelo Estado ou em andamento para sanar as omissões históricas que afasta o estado de coisas inconstitucional.
Por outro lado, Edson Fachin, Flávio Dino e Cármen Lúcia votaram pelo reconhecimento da omissão estatal sistêmica no enfrentamento das violações de direitos da população negra.
Em seu voto, Fachin aproveitou para ilustrar sua visão sobre o racismo estrutural no país e por que ele seria responsabilidade institucional. “Tais violações [contra negros] não são episódicas ou circunstanciais, mas contínuas e resultam de um processo histórico de longa duração, que remonta ao regime escravocrata e à consolidação de um imaginário de ‘democracia racial’ que, na prática, serviu para invisibilizar o racismo, dificultar sua adequada identificação e enfrentamento e silenciar a discussão sobre qualquer política reparatória”, disse.
Para Thiago Amparo, professor de direitos humanos na FGV (Fundação Getulio Vargas), o STF ficou “no meio do caminho” em sua decisão ao reconhecer que “há racismo estrutural, mas não há omissão sistemática do Estado porque ações já foram tomadas contra o racismo nas esferas legais e de políticas públicas”. O advogado avalia que ações já existentes não omitem o poder público de falhar no combate ao racismo. “A persistência da violência policial é um exemplo.”
O não reconhecimento do estado de coisas inconstitucional também é apontado como uma falha por José Luiz Souza de Moraes, presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo. Porém, ele ressalta que a afirmação do racismo estrutural já é um marco histórico e político a ser comemorado.
“A decisão abre portas para a elaboração de políticas públicas, através das quais é possível mudar o cotidiano de toda a população. É através delas que o estado distribui a Justiça”, diz.
Na conclusão do voto, Fux propôs que o STF reconheça o quadro de violação contínua de direitos fundamentais da população negra e exigiu do Estado ações em saúde, segurança alimentar, segurança pública e proteção da vida, além de prever políticas reparatórias e de construção de memória desse grupo populacional.
Na educação, por exemplo, a tese determina a capacitação de professores, inclusive em cooperação com universidades do continente africano, para o ensino da história e cultura afro-brasileira.
Ao Judiciário, o ministro sugeriu a criação de protocolos de atendimento a pessoas negras nos órgãos de Justiça, incluindo tribunais, Ministério Público, Defensorias e polícias.
“É preciso considerar que houve um avanço, mas ainda estamos longe de um status aceitável de igualdade racial nos dados de violência, de renda e de educação”, diz Douglas Leite, professor de direito público na UFF (Universidade Federal Fluminense).
Para Paulo Ramos, coordenador de pesquisas do Afro Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial), as instruções no voto do ministro abrem espaço “para atingirmos outras camadas e instituições brasileiras que muitas vezes não operam de forma democrática”.