MIAMI BEACH, EUA (FOLHAPRESS) – Eles rosnam, deitam e rolam. Também se cheiram, como fazem os cachorros, mas esse canil com ares de ringue de boxe na entrada da feira americana Art Basel Miami Beach tem bichos com caras bem conhecidas –Andy Warhol e Pablo Picasso encabeçam uma matilha, e a outra tem Jeff Bezos e Mark Zuckerberg no comando, gênios da arte batendo de frente com os “tech bros” que hoje mandam no mundo inteiro.

E mais, definem como enxergamos esse mundo. Os cãezinhos robóticos são do artista americano Mike Winkelmann, mais conhecido no mundo digital como Beeple. E mais conhecido ainda por ter vendido um NFT, um arquivo virtual único que todos podem ver mas só tem um proprietário exclusivo, por quase US$ 70 milhões na Christie’s há quatro anos. Seus novos bichinhos têm câmeras no focinho que registram o que veem a partir de algoritmos programados com a mentalidade ou estilo de cada criador ou magnata em cena.

Foi a sensação da feira americana encerrada neste domingo, recorde de cliques e comentários –e também de vendas, todos os robozinhos a US$ 100 mil, ou R$ 544 mil cada um, encontraram um pai de pet para chamar de seu nos primeiros minutos deste que é um dos maiores eventos do mercado de arte do mundo.

Warhol, aliás, o grande mestre da arte pop americana, não triunfou só em versão canina. Uma das obras mais caras e disputadas da feira, seu retrato do boxeador Muhammad Ali, foi vendido por US$ 18 milhões, ou R$ 98 milhões, no primeiro dia da feira pela galeria Lévy Gorvy Dayan, de Nova York.

Nessa que é considerada uma das obras-primas de Warhol, o lutador encara o espectador, punhos em riste, pronto para atacar, com um olhar tão desafiador quanto vulnerável, cheio de dor, muito mais do que de empáfia. O registro fotográfico que embasa a releitura de tons alaranjados e violetas do artista foi feito na década de 1960 no mesmo prédio que hoje recebe a feira em Miami Beach, quando o então Cassius Clay nocauteou Sonny Liston no endereço à beira de um Atlântico cintilante.

O mesmo artista pop, com seus retratos de Jackie Kennedy enlutada, cadeiras elétricas e flores radioativas, estava em todos os cantos do evento do balneário, o que não é tão comum. A Art Basel Miami Beach sempre teve um ou outro grande mestre, em especial levado pelas mãos das grandes galerias do mercado de arte moderna, mas nunca essa presença dos pilares da arte americana foi tão sentida em décadas de feira.

É um sinal de que os cachorrinhos não estão só no playground de Beeple. Ninguém veio a passeio ao evento definidor dos rumos de um mercado cada vez mais difícil.

Desde a pandemia, o volume de vendas em feiras e leilões vem encolhendo, sinal de retração de uma indústria que movimenta bilhões entre os super-ricos. A feira agora, com uma série de eventos em paralelo nesse paraíso de ostentação à beira-mar, tão cool quanto kitsch, aconteceu na ressaca de leilões em Nova York que bateram recordes, com vendas avassaladoras de Gustav Klimt e Frida Kahlo.

O rosto da surrealista estampado num autorretrato do tamanho de um selo postal, aliás, estava à venda na feira por US$ 15 milhões, ou quase R$ 82 milhões, no rastro de outro “selfie” da mexicana bater o recorde de obra mais cara de uma artista já leiloada na história, por US$ 54,7 milhões, ou R$ 297,6 milhões, na Sotheby’s, em Nova York.

Existe uma sede do mercado mais do que evidente por obras de grandes mestres do surrealismo, um sintoma que espelha o absurdo dos homens-cães de Beeple. Num mundo que derrete a olhos nus, transbordando de idiotices e acintes na política e na economia, melhor se ater a quem primeiro pôs os sonhos em telas, visões fantásticas como anteparo a um mundo vil e inescapável, a não ser pela imaginação poderosa de artistas.

Não faltaram os nomes mais brilhantes dessa vanguarda. De René Magritte e Max Ernst a Man Ray, de Leonora Carrington a Leonor Fini, de Salvador Dalí a Wilfredo Lam, galerias do mundo todo fizeram uma seleção dos gênios do movimento, enquanto casas mais novas buscaram o mais surreal de seus novíssimos artistas para pôr em cena visões de um mundo virado do avesso, longe de qualquer base mais sólida, só pântano movediço.

“Depois das últimas eleições, as pessoas ainda estavam tateando o chão, tentando achar terra firme”, diz Bridget Finn, a diretora da feira, lembrando o terremoto chamado Donald Trump. “Agora os galeristas tiveram mais tempo para construir uma estratégia, e acho que eles conseguiram mesmo.”

Nesse caldo, houve espaço até para trabalhos mais ousados entre os brasileiros na feira, o terceiro país mais bem representado por galerias num universo de quase 300 casas que disputam a atenção de colecionadores esticados pelas plásticas e bronzeados pelo sol faiscante dessas bandas.

Enquanto os americanos atacaram com o melhor do melhor do sonho americano, com Alexander Calder, Andrew Wyeth, Carl Andre, Donald Judd, Ed Ruscha, Gordon Parks, Jean-Michel Basquiat, Mark Rothko, Robert Rauschenberg, Roy Lichtenstein e Willem de Kooning, havia trabalhos de grosso calibre na ala da fantasia para além dos monstros do geometrismo abstrato tropical, de Waldemar Cordeiro a Hélio Oiticica, de Lygia Clark a Lygia Pape.

Um dos melhores trabalhos de Adriana Varejão, uma tela que mostra uma sauna toda branca manchada de sangue mais do que vermelho, seu registro mais acachapante da carnificina que se agita por baixo das mais belas superfícies, a grande metáfora do fracasso das utopias modernistas, estava à venda por US$ 1,6 milhão, ou R$ 8,7 milhões, na paulistana Galatea.

Não foi vendido. Também não se sabe ainda o destino da águia de ponta-cabeça, esculpida no mais puro mármore branco, pelo artista italiano Maurizio Cattelan, grande chamariz da porta da Gagosian, a maior galeria do mundo, que tem no seu elenco o maior satirista atual do mundo da arte, tão ruim quanto é bom.

Os Estados Unidos se reviram e se refestelam na própria luxúria e miséria, parece ser a lição. A águia tombada é mais sinal de inveja do que qualquer coisa nesse circo.