SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Joanna Batista Ramos nasceu em 1878 –dez anos antes, portanto, da Lei Áurea, que oficializou o fim da escravidão no Brasil. Era negra, analfabeta, lavadeira e filha possivelmente de escravizados.
É bem provável que você nunca tenha ouvido falar dela. Mas com certeza já escutou “Marcha Número 1 do Vassourinhas”, com aquela melodia que sempre vem à mente quando se pensa em frevo (“tã-nã-nã-nã-nã-nã-nã”).
Pois Joanna é coautora da música que, como mostra um recibo da época, foi vendida por 3.000 réis para o Vassourinhas, clube carnavalesco tradicional no Recife. A conversão direta é difícil num Brasil que passou por tantas trocas de moeda e hiperinflações desde então, mas, num cálculo simplificado, a gente pode chegar a um poder de compra equivalente aos atuais R$ 90.
Pouco se sabe sobre essa mulher e tantas outras que acabaram apagadas na história do Carnaval. Como uma festa capaz de produzir tamanho brilho ofuscou tantos trabalhadores que possibilitam sua existência?
“Trabalho de Carnaval”, exposição em cartaz até abril na Pinacoteca de São Paulo, tem muitos momentos para relembrar o poder dessa festa que, se não nasceu brasileira, conseguiu sambar na cara da sociedade como em nenhum outro canto do mundo.
Ao colocar em primeiro plano costureiras, ritmistas, pintores de alegoria, lavadeiras, aderecistas e foliões anônimos, a mostra vira o foco para o chão de fábrica da folia e inverte aquele dito popular: quem vê close, não vê corre.
A curadoria de Ana Maria Maia e Renato Menezes enxerga as tramas produtivas que põem em marcha o espetáculo e também contranarrativas sociais. O que a antropóloga Lélia Gonzalez chama de “extraordinária criação de grupos proletários negros”, sobre as escolas de samba do Rio de Janeiro, pode facilmente se estender para o resto do país.
O Carnaval aparece como solo fértil para profundas contradições sociais e culturais. Você tem nos desfiles televisionados uma tropa de trabalhadores dos barracões, submetidos a jornadas exaustivas para criar carros alegóricos e fantasias do repasto midiático.
Mas há um limite para mascarar disputas de classe e raça, e aqui abrimos alas para o Carnaval que subverte a lógica do opressor. É nessa época que se permite debochar da autoridade, rir na cara de quem não te tolera. Quando mais daria para retratar o prefeito como um boneco de Judas? Foi o que a Mangueira fez em 2018, quando Marcelo Crivella, sobrinho do bispo Edir Macedo, governava o Rio e cortou verbas para as agremiações que atravessam a Sapucaí.
“Pecado é não brincar o Carnaval!”, zombou o carro alegórico que trouxe um Cristo coberto por lona preta, réplica do que o carnavalesco Joãosinho Trinta fez em 1989. Naquele ano, a Arquidiocese do Rio havia vetado uma alegoria de Cristo-mendigo no espetáculo da Beija Flor, e a solução foi tapá-lo e estender o aviso: “Mesmo proibido, olhai por nós”.
Esse desfile, histórico, aparece num painel na Pina com o convite que vinha atrás do Cristo censurado: “Mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua” são todos bem-vindos no grande baile da escola.
Carnaval é política. Desde que o samba é samba, é assim, e se trocar por frevo, axé e outros ritmos carnavalescos a máxima continua valendo. Já em seus primórdios, a temporada foliona dá agência a classes oprimidas. Perto da abolição, por exemplo, escravizados compravam alforrias com o lucro de seus festejos.
A mostra por certo é só um recorte, com destaque para o eixo Rio-São Paulo-Bahia-Pernambuco. E nem tem pretensão de ir além, já que um olhar mais panorâmico sobre os vários Carnavais do país seria missão estratosférica.
Há algo de universal, contudo, nesse compêndio. Pulula o paradoxo: o alvoroço que encanta o país é também o que invisibiliza o operário.
Mas há também uma arqueologia afetiva da festa, na reconstrução de trajetórias como a de Joanna.
Cada fantasia bordada, cada passo improvisado, cada batuque afinado emerge como fração de uma história coletiva, onde autoria e pertencimento foram muitas vezes sequestrados. Sempre essa tensão latente entre a folia ora adestrada pelos valores comerciais, ora indomável ao status quo.
Uma irreverência bem dimensionada numa foto de Custodio Coimbra: um conversível pintado de rosa, vários homens vestidos de mulher a bordo. Na lataria vem escrito “au-au-au, nosso cu é 1 real” ou “as putonas desta margarida”. No instante do clique, o carro estava em frente a uma igreja evangélica de parede azul, a Nacional do Senhor Jesus Cristo.
Carnaval é isso. Dá para ver o close e o corre.



