SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Circo, poesia, romance, música, rádio, teatro dramático, teatro de revista, chanchadas, Cinema Novo, televisão. Definitivamente, não é pouca coisa. E se a internet tivesse surgido quando ele ainda estava vivo, talvez Grande Otelo pudesse se transformar em influencer.

Sebastião Bernardes de Souza Prata foi um artista precoce e versátil, nascido em Uberlândia, em 1915, que conseguiu se adaptar a tantas atividades em seus 78 anos de vida. Os 110 anos de nascimento justificam sua escolha como personagem de uma ocupação no Itaú Cultural, em São Paulo, até 8 de março de 2026.

Grande Otelo morreu ainda em fase de muita atividade e grande reconhecimento do público. Em 1993, foi vítima de um infarto fulminante ao desembarcar no aeroporto Charles de Gaulle, na França. O ator viajou para o Festival dos Três Continentes, em Nantes, no qual seria homenageado num painel dedicado à negritude no cinema.

Se o grande sucesso popular vinha desde as décadas de 1940 e 1950, quando formou com Oscarito uma dupla de astros no auge das chanchadas no cinema brasileiro, Otelo aos poucos foi consolidando sua atuação de constante desafio a uma indústria cultural excludente e racista.

“As novas gerações não o conhecem. Queremos um resgate de sua figura. Destacamos aqui sua arte e também essa combatividade”, explica Galiana Brasil, gerente do Núcleo de Curadorias e Programação Artística do Itaú Cultural. “Grande Otelo já discutia pautas que são de agora. Ele, por exemplo, denunciava as diferenças salariais entre atores brancos e negros.”

Na dupla de comédia que ele fazia com Oscarito no cinema, seus nomes dividiam a posição de destaque nos cartazes dos longas, mas ele recebia cachês menores do que o parceiro branco. “Estamos trazendo muito à exposição essa questão dos sindicatos, da luta pela profissionalização.”

Otelo chamava a propalada democracia racial no Brasil de “falácia”, e reiterava que seu sucesso era individual e à margem de uma discriminação forte no circuito de arte do país. Ele tinha consciência de que era o primeiro artista negro brasileiro a conseguir destaque em várias áreas criativas, e se mantinha publicamente em constante alerta para a questão racial.

Entre os 160 itens na ocupação, muitos documentos resgatam essa resistência de Otelo. Um de seus embates polêmicos foi com o escritor de novelas Gilberto Braga, após este declarar que o teatro iria acabar. Otelo responde: “O teatro acabará se a TV continuar com a novela à noite, impedindo assim o povo de sair à rua e ir ao teatro.”

“Será muito interessante mostrar aos visitantes essa faceta dele mais aguerrido, mais politizado”, comenta Brasil. Ela destaca as anotações de próprio punho de Otelo em exibição. “Ele mantinha muitos caderninhos, com ideias, poemas e rascunhos. E agendinhas”, acrescenta, mostrando uma com as anotações dos contatos telefônicos de Gilberto Gil.

Montada no primeiro andar do prédio do Itaú Cultural, a ocupação tem consultoria de Deise de Brito e foi projetada visualmente por Kleber Montanheiro, que já foi responsável pela tarefa em outras edições da série, como as que homenagearam Laura Cardoso, Tônia Carrero e Lima Duarte.

No caso de Grande Otelo, ele teve muito material para distribuir no espaço. “Com teatro, música, cinema e TV, a vida dele é uma viagem por imagens do século passado.” O currículo impressiona: 103 peças, mais de uma centena de filmes e 42 gravações em disco.

Com uma área central que mostra uma praça carioca estilizada, a exposição reúne fotografias, roteiros, partituras, fotografias, cartas, roupas usadas no teatro e outros objetos. A maior parte do material faz parte do acervo de Otelo guardado desde 2008 no Centro de Documentação e Pesquisa da Funarte, no Rio de Janeiro. Há também material vindo dos arquivos da TV Cultura e da TV Globo.

E, como destaque, foi montado um pequeno cinema, com poltronas antigas, para quem quiser assistir a trechos de seus filmes. “No imaginário das pessoas, o cinema é a lembrança que chega mais forte”, afirma Galiana Brasil.

O destaque para seus filmes é evidente. Além de um site sobre a ocupação, que traz mais itens e recordações de Otelo que ficaram fora do espaço físico da exposição, há mais uma atração para visitas digitais.

O canal de streaming gratuito da instituição, o Itaú Cultural Play, ajuda a complementar o perfil do artista. Estão disponibilizados ali filmes relevantes da carreira de Otelo, como “Carnaval Atlântida” (1952), comédia na qual ele contracena com o parceiro Oscarito e outra lenda do cinema brasileiro, José Lewgoy.

Outro longa divertido, de novo com Oscarito, é “Matar ou Correr” (1954), chanchada que tira onda com os faroestes, a começar pelo título, uma brincadeira com o clássico western “Matar ou Morrer”, de 1952, com Gary Cooper e Grace Kelly.

A versatilidade de Otelo pode ser conferida em dois dramas dirigidos por Nelson Pereira dos Santos: “Rio Zona Norte” (1957), com Jece Valadão, Paulo Goulart e a cantora Ângela Maria, e “Jubiabá” (1987), ao lado de Betty Faria.

Fazem parte da programação “Também Somos Irmãos” (1949), de José Carlos Burle, com Jorge Dória e Ruth de Souza, atriz que foi parceira constante de Otelo na defesa de questões de negritude, e o policial “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” (1977), estouro de bilheteria dirigido por Hector Babenco.

Mas a mostra não estaria completa sem “Macunaíma”, um clássico definitivo do cinema brasileiro, realizado por Joaquim Pedro de Andrade em 1969. Na criativa e elogiada adaptação do livro de Mário de Andrade, Otelo divide o personagem protagonista, o “brasileiro sem caráter”, com Paulo José.

Uma curiosidade: no cineminha construído dentro da ocupação, entre os trechos de filmes em exibição estão algumas cenas de “Carnaval no Fogo”, filme de 1949, dirigido por Watson Macedo. Num episódio que bem poderia ser uma brincadeira com o título do filme, os rolos do longa queimaram em um incêndio, e só restou o trecho que será exibido ali. Uma relíquia cinematográfica.

Ocupação Grande Otelo

Quando: Ter. a sáb., das 11h às 20h; Dom., das 11h às 19h; Até 8/3

Onde: Itaú Cultural – Av. Paulista, 149, São Paulo

Preço: Grátis