SÃO PAULO, SP (FOLHARPESS) – Mais do que alegria, foi alívio o que o norueguês Jon Fosse sentiu na manhã de 5 de outubro de 2023, quando a Academia Sueca anunciou que ele era o laureado com o Nobel de Literatura daquele ano.
Alívio porque a obra que mais lhe custou tempo e dedicação já estava publicada. “Heptalogia”, que chega agora ao Brasil com tradução de Leonardo Pinto Silva pela Fósforo, é um catatau de quase 700 páginas que transcorre em grande parte como um único fluxo de consciência ao longo de sete dias.
“É, de longe, a minha obra mais longa e ambiciosa”, afirma Fosse, de 66 anos, à Folha em entrevista por email. “E precisei de muita concentração para escrevê-la e conclui-la. O que tenho vivido depois do Nobel são interrupções constantes.”
Fosse divide seu tempo entre Oslo –onde vive desde 2011 na Gruta, como é chamada a residência vitalícia concedida pelo governo a dignitários da cultura norueguesa — e Hainburg an der Donau, um vilarejo de 6.000 habitantes na Áustria.
Para ele, o processo de escrita de todos os seus livros –sejam romances, novelas ou peças de teatro– envolve um ato de escuta. Nada disso combina com as demandas de um Nobel.
“Quase todos os dias recebo um convite para ir aqui ou ali, ou um pedido para uma entrevista. É claro que recuso quase tudo. Mesmo assim, só para responder aos pedidos, gasto muito tempo”, conta o escritor, que gentilmente cedeu parte desse tempo para responder às questões da Folha.
Descrever o enredo da “Heptalogia”, assim como o de outros livros de Fosse, é um esforço pouco frutífero, incapaz de dar conta da obra. O protagonista e narrador, Asle, é um pintor viúvo que vive na costa oeste da Noruega e tem apenas dois amigos, seu vizinho pescador e seu galerista.
Há, porém, um outro Asle, um artista que vive em uma cidade próxima e luta contra o alcoolismo. Ao apresentar esse doppelgänger e sua relação com o narrador, Fosse constrói um monólogo interior sublime que toca em questões profundas como quem somos e qual o sentido da nossa existência.
Esse fluxo de consciência que se desenrola na cabeça do Asle-narrador mescla memórias do passado, eventos do presente e reflexões filosóficas sobre vida, morte, arte e Deus –tudo isso ao longo da semana que antecede o Natal.
O romance é dividido em sete capítulos agrupados em três partes (“O outro nome”, “O eu é um outro” e “Um novo nome”), mas isso não foi algo planejado de antemão. Segundo o autor, o livro simplesmente se dividiu em sete ao longo da escrita.
Todos começam com a mesma frase: “E me percebo de pé olhando para o quadro com duas linhas, uma lilás e uma marrom, que se cruzam bem no meio”. Não por acaso, dá para dizer que o livro inteiro é uma jornada sobre duplos que se cruzam bem no meio.
Ao justificar o prêmio de Fosse, a Academia Sueca citou “suas peças e prosa inovadoras, que dão voz ao indizível”. Parte desse indizível recai sobre as constantes repetições, marca do estilo do norueguês, que dispensa a pontuação tradicional para retratar o que se passa na cabeça dos seus narradores.
Questionado se essa repetição ocorre porque a vida em si é repetitiva ou se porque só entendemos a verdade quando contada várias vezes, Fosse responde que é tudo isso, mas também algo mais simples.
“Quando eu era adolescente, era completamente apaixonado por música, ouvia e tocava. Estranhamente, de repente parei de ouvir música e de tocar. E comecei a escrever. Ao escrever, de alguma forma tentei recriar o espaço em que me encontrava quando era apaixonado por música. Escrever é para mim como uma espécie de tocar. E na música, o ritmo, a repetição e a variação são cruciais. Tenho escrito mais ou menos da mesma forma desde que escrevi meu primeiro romance publicado, aos 20 anos.”
Ao comentar esse processo, ele diz que continua a escrever “para chegar a outro lugar”. “Ao lugar único que a escrita, ou a literatura, me oferece.”
Algumas pausas são bem-vindas. Fosse conta que, durante muitos anos, a tradução foi uma atividade que o ajudou nos interregnos –agora mesmo, ele está vertendo para o norueguês “O Castelo”, clássico de Franz Kafka que, assim como a “Heptalogia”, termina sem um ponto final.
“Preciso de distância em relação a tudo para escrever bem. Também em relação a mim mesmo. Escrever tem a ver com forma, com transformação, com transcendência. Para escrever bem, é impossível para mim escrever de forma autobiográfica”, afirma, resvalando no tema da autoficção que parece reinar na literatura contemporânea.
“É claro que também uso o que vivi em meus escritos, mas sempre de uma forma que se encaixe na lógica ou no universo do que estou escrevendo. Não diria que Asle e eu somos parentes, mas há uma espécie de relação entre ele e eu.”
Essa relação fica explícita, por exemplo, em uma passagem na qual Asle medita sobre arte. “E é isso que deve ocorrer com uma imagem, ela deve se revelar, como um acontecimento, como uma dádiva, sim, uma boa pintura é uma dádiva, uma espécie de prece, é ao mesmo tempo uma dádiva e uma prece de gratidão, eu penso e jamais poderia pintar um bom quadro obedecendo ao meu próprio desejo, pois a arte acontece, a arte simplesmente acontece, é assim e pronto.”
Fosse foi ateu durante boa parte da vida até que um acidente, em 2011, o deixou internado em coma alcoólico. Depois de quase morrer, se converteu ao catolicismo.
“O que me fez deixar de ser ateu tem a ver com a minha experiência de escrever”, conta. “Quando estou escrevendo bem, com certeza não vem de mim, mas de algum lugar lá fora.”
Desde o Nobel, Fosse voltou a escrever peças de teatro após uma pausa de 15 anos, publicou a novela “Brancura”, que também saiu pela Fósforo, e acaba de lançar “Vaim”, o primeiro romance de uma nova trilogia — ainda sem previsão por aqui.
A editora da “Heptalogia” ainda publicou “A Casa de Barcos” e a coletânea teatral “Vai Vir Alguém e Outras Peças”, enquanto o Círculo de Poemas fez uma antologia de sua poesia. A Companhia das Letras também editou a prosa de “É a Ales” e “Trilogia” e acaba de lançar o infantil “A Pequena Violinista”, parceria com o ilustrador Oyvind Torseter.
Tudo isso é fruto do reconhecimento impulsionado pelo prêmio sueco. Mas o norueguês diz que luta mesmo é para voltar à vida que tinha antes. “A palavra mais útil é: não. Obrigado pelo seu pedido, mas não.”
Afirma que, agora, todos o veem de uma forma diferente. “Passei de sujeito a objeto! Ainda assim, tenho a certeza de que é possível escrever. Só preciso estar pronto para voltar a escrever as minhas próprias coisas”. Deixem o escritor trabalhar.
Heptalogia
Preço: R$ 149,90 (688 págs.); R$ 104,90 (ebook)
Autoria: Jon Fosse
Editora: Fósforo
Tradução: Leonardo Pinto Silva



