SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os governos da Rússia e da Índia assinaram um acordo de parceria estratégica nesta sexta-feira (5) desenhado para posicionar os dois países do Brics, bloco que inclui o Brasil, no bravo novo mundo de regras bagunçadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Ambas as nações lidam com pressões diversas vindas da Casa Branca, com o republicano visando fazer a Índia comprar menos petróleo russo e com isso financiar a Guerra da Ucrânia, mas evitaram ao máximo o choque direto com Trump.
Os russos contam com a russofilia do americano para lograr um acordo favorável ou apenas seguir em frente com sua guerra na Ucrânia sem que Kiev tenha ajuda dos EUA, e os indianos negociam um fim ao tarifaço imposto a eles.
“Em temos de complexidade geopolítica, os laços Rússia-Índia resistem”, disse o comunicado selado em Nova Déli no segundo dia de visita de Vladimir Putin a Narendra Modi, premiê que recebeu o russo em alto estilo e com promessas de reforçar o papel de seu país como o maior comprador de armas de Moscou, enquanto o líder do Kremlin enfatizou a questão do petróleo.
Com as sanções ocidentais à Rússia, os indianos elevaram sua compra da commodity e, do fim de 2022 até novembro de 2025, seu país virou destino de 38% do óleo russo. Trump resolveu puni-los por financiar Moscou, dobrando para 50% a sobretaxa de importação aos produtos do país em agosto, gerando a ira de Modi.
Em relação à Rússia, o americano está em uma ofensiva por um acordo de paz que parece favorecer Putin, ou um desengajamento da guerra que também agrada o Kremlin. Mas no fim de outubro aplicou sanções contra as duas maiores petroleiras russas, o que obrigou uma redistribuição das exportações por empresas secundárias.
Isso, mais a queda no preço do barril e o rublo mais forte, derrubou a receita de Moscou com petróleo. Em novembro, ela caiu quase 34% em comparação com o mesmo mês de 2025, ainda que o fluxo de exportação siga estável. Em 2025, a queda ronda os 50%, segundo análise do banco Goldman Sachs.
“Estamos prontos para manter o envio ininterrupto de combustíveis para a economia indiana”, disse Putin nesta sexta, sem citar o momento de crise e os já generosos descontos no produto devido ao ambiente mais restrito de negócios energéticos. O russo também ventilou a construção de uma central nuclear em Kundankulam.
Desde os tempos da União Soviética, a Índia é uma grande compradora de armas de Moscou, mas nos últimos anos tem buscado diversificar seu arsenal, trocando a aquisição de caças russos por franceses, por exemplo.
Segundo o Instituto Internacional para Estudos da Paz de Estocolmo (Suécia), de 2020 a 2024, a fatia russa na lista de compras bélicas de Nova Déli foi de 38%, ante 76% do quadriênio anterior. O papel da França se firmou, e Paris chegou a 33% do mercado indiano.
A Índia é o segundo maior importador de defesa do mundo, com 8,3% do mercado segundo o Sipri. Perde apenas para a Ucrânia, que saiu do zero em 2020 para 8,8% agora, cortesia da guerra iniciada em 2022 por Putin.
O conflito foi tema das conversas, e Modi manteve sua posição de que “o mundo precisa ter paz”. Ele voltou a se colocar como mediador eventual, mas esse é um papel hoje reservado a Trump.
Putin ofereceu a retomada de parcerias militares, inclusive visando exportação “para países amigos”, como já ocorreu no passado com os caças multifuncionais Su-30, que a Índia primeiro comprou de Moscou e depois fabricou, e refinou, em casa. Deu certo, e agora a quase ex-aliada russa Armênia será a primeira cliente do avião feito pelos indianos.
“Em resposta às aspirações da Índia por autossuficiência, a parceria está agora sendo reorientada para pesquisa conjunta e desenvolvimento, assim como produção de plataformas avançadas de defesa”, disse o russo.
Não houve, contudo, nenhum anúncio efetivo. O motivo são os limites atuais da indústria russa, comprometida pela produção para a guerra e tolhida de materiais mais sensíveis por sanções.
Esse tipo de questão já ocorreu antes. Putin gostaria que os indianos comprassem e montassem no país o Su-57, seu caça de quinta geração que só foi vendido para a Argélia, 15 anos depois de seu primeiro voo.
O projeto é simbólico, pois era conjunto com a mesma Índia e usando o caso de sucesso do Su-30 como base. Nova Déli iria fazer a versão de dois lugares do avião, que Moscou não usa, mas caiu fora no meio do caminho e foi comprar material francês. Será notável se voltar ao Su-57 agora.
Mais futuro parece ter um negócio já adiantado de arrendamento de um submarino de propulsão nuclear russo pelos indianos, e há outras parcerias já em curso, como o míssil BrahMos.
Subjacente a tudo isso está a China, a rival estratégica dos EUA. Aqui o cipoal de interesses é denso. Rival histórica e com diversas desconfianças atuais em relação a Pequim, Moscou hoje vive uma relação “sem limites”, como definido por Putin e Xi Jinping 20 dias antes da guerra em 2022.
O namoro instável de Trump com o russo pode ser visto como uma tentativa de afastá-lo da órbita chinesa. Já em relação à Índia, o efeito foi contrário. Nova Déli são grandes rivais na Ásia e quase se enfrentaram militarmente nos últimos anos. Mas a pressão de Trump levou Modi a reaproximar-se cautelosamente de Xi, visitando o chinês neste ano.
Com tudo isso e a necessidade de buscar acomodação de Trump, os atores tentam se posicionar entre os polos conflitantes. A Índia tem uma posição privilegiada, pois é uma gigante econômica em ascensão, tem a maior população do mundo ainda com bônus demográfico e de quebra é uma potência nuclear.



