FOLHAPRESS – William T. Vollmann é um dos escritores mais celebrados e menos conhecidos dos Estados Unidos, autor de quase 30 livros em 38 anos. Citado por alguns críticos como candidato ao Nobel de Literatura, o recluso intelectual penou anos para conseguir publicar o que pode ser seu último livro.

A aparente contradição vem do estilo prolixo e da vastidão temática de sua obra de ficção e não ficção, de difícil apelo comercial. Sua mais ambiciosa empreitada, os sete volumes acerca da natureza da violência de “Rising Up and Rising Down” (2003), somou mais de 3.000 páginas.

Quando a editora insistiu numa versão de um volume, ele por uma única vez topou e entregou com queixas um catatau de 726 páginas.

“Essa versão abreviada também só tem uma justificativa: eu fiz pelo dinheiro. Não posso fingir (embora você possa discordar) que uma redução para um único volume seja uma melhoria em relação à versão completa. Mesmo assim, não é necessariamente pior. Para começar, agora existe a possibilidade de alguém lê-la”, escreveu no prefácio, com um misto de ironia e desassombro.

O estilo ácido e direto se espraiou por obras acerca da guerra, da pobreza, da história americana, do teatro japonês, prostituição, vício e até um livro de fotografias e pinturas sobre sua experiência como cross-dresser. Ganhou críticas, claro, porque poucos lhe creditavam tantos lugares de fala, por assim dizer.

Com 20 anos de atraso, seu estudo sobre o autoritarismo do século passado chega ao Brasil com a edição de “Central Europa”, sua primeira ficção publicada no país. A obra, laureada com o prestigioso National Book Award de 2005, é considerada sua mais acessível.

Ela conta, em 37 capítulos organizados em pares que às vezes dançam, às vezes não, o impacto das ideologias opressivas do nazismo e do comunismo, corretamente identificadas como irmãs de sangue, apesar de Stálin ainda provocar suspiros em certa esquerda.

É um “tour-de-force” magnífico, em que personagens históricos têm suas vidas contadas ora com realismo calcado em minuciosa pesquisa, ora em ficção desabrida. “Eu inventei isso”, diz a nota 102 do capítulo sobre o marechal nazista Friedrich Paulus, em referência a uma descrição do oficial nos arquivos soviéticos.

Ele pontifica uma dupla brilhante de capítulos, que contam sua história e a do general russo Andrei Vlasov. Enquanto o alemão foi tachado de traidor e passou a colaborar com Moscou após se entregar na derrota de Stalingrado, o soviético resistiu ao Kremlin e bandeou-se para Hitler, sendo executado após a Segunda Guerra Mundial.

O denominador comum é a medida possível de revolta pessoal contra sistemas totalitários, usando como pano de fundo a vida na Alemanha e na União Soviética dos anos 1920 até a década de 1970.

O fio condutor do livro é o compositor soviético Dmitri Chostakóvitch, que sobreviveu à ascensão e queda de Josef Stálin e chegou à Guerra Fria. Ele surge em diversos capítulos, driblando as agruras da censura e se acomodando ao poder vigente.

O foco em Chostakóvich carrega uma falha das liberdades tomadas. Vollmann pontua a narrativa sobre o músico com uma obsessão doentia por Elena Konstantinovskaia, mulher do documentarista pró-regime Roman Karmen, e depois dedica um posfácio para dizer que nada daquilo ocorreu, como em um ato falho.

Do ponto de vista estilístico, Vollmann não é um autor fácil, com digressões e desconexões entre capítulos, que não guardam ordem cronológica. Se isso adiciona prazer quando transposta à elegante prosa, comparada à de Thomas Pynchon, por vezes resvala no barroquismo.

Há maneirismos vazios que já apareciam em outras obras do americano, como o uso de fontes diferentes para contextualizar personagens ou referências. Já um ponto forte é a tradução de Daniel Pellizzari, ela mesma uma façanha em si.

Desta forma, não impecável, mas necessária em tempos de ressurgimento da simpatia a soluções simples fora da democracia em todo o mundo, o leitor brasileiro é apresentado a Vollmann e sua melancolia.

Ela decorre de 66 anos de uma vida acidentada: a irmã de seis anos morreu afogada sob sua vista, a filha Lisa foi vítima do alcoolismo em 2022 e ele enfrenta câncer de cólon há anos, além de ter sido atropelado em 2023.

Dono de uma misantropia aguda, entusiasta de armas e cético acerca do papel do Estado, chegou a ser investigado como suspeito de ser o terrorista antissistema Unabomber. Suas descrições cruas de sexo e o papel de algumas de suas personagens femininas lhe valeram acusações de misoginia.

Em uma entrevista ao jornal Washington Post em agosto, disse ter mais dois ou três anos de vida. Se falou isso para reforçar a necessidade de publicar ou de fato está nas últimas, é incerto, mas de toda forma sua mais recente obra, “Uma Mesa para a Fortuna”, sairá em 2026 após anos sem editora.

E será ao melhor estilo Vollmann, com um épico de mais de 3.000 páginas em quatro volumes mesclando ficção e a história da espionagem e política externa dos EUA no pós-guerra.

CENTRAL EUROPA

– Avaliação Muito bom

– Preço R$ 149,90 (768 págs.); R$ 49,90 (ebook)

– Autoria William T. Vollmann

– Editora Companhia das Letras

– Tradução Daniel Pellizzari