(FOLHAPRESS) – “Nada mais do que dar ao teatro o que é do teatro, ou seja, configurar a música de tal modo que ela esteja consciente, em cada instante, da sua obrigação de servir o drama. E, claro está, tudo isto sem prejuízo do primeiro direito absoluto à existência (puramente musical) de semelhante música”. Era assim que o próprio compositor Alban Berg definia o projeto de “Wozzeck”, ópera que a Osesp apresenta esta semana na Sala São Paulo.
Estreada há cem anos em Berlim após longa gestação, a história do anti-herói Wozzeck, um soldado de baixa patente vítima de bullying destruidor por parte de seus superiores – o que inclui ser usado como cobaia para experimentos de um médico sádico -, foi adaptada por Berg a partir da peça “Wozzeck”, de Georg Büchner.
A ópera havia sido montada no Brasil apenas uma vez, em 1982, no Teatro Municipal de São Paulo, dirigida pelo sempre visionário maestro Isaac Karabtchevsky, e tendo no desafiador papel título, em elogiada atuação, o barítono brasileiro Carmo Barbosa.
Mais de quarenta anos depois, ela surge no formato de concerto cênico, com a Osesp (regida por seu titular Thierry Fischer) saindo totalmente da zona de conforto: de fato, o comentário dos músicos ao longo da semana de preparação foi, invariavelmente, acerca da complexidade e das dificuldades técnicas da partitura.
Escrita em linguagem atonal livre -para além das fronteiras da tonalidade clássica-, e utilizando-se frequentemente do “sprechgesang”, espécie de canto falado introduzido no repertório pouco mais de uma década antes por Arnold Schoenberg, professor direto de Berg, “Wozzeck” é estruturada em três atos, cada qual com cinco cenas.
Nela apenas têm nome as personagens cuja dignidade psicológica e social fora suprimida com violência: Wozzeck, Marie, Andres, Magret. Os superiores hierárquicos são chamados apenas por suas funções: Capitão, Doutor, Tambor-Mor.
O fato de Berg utilizar formas clássicas como suíte, sonata, fuga e rondó -estranhalizadas, distorcidas, ironizadas- não apenas unifica o todo, mas resulta extraordinariamente impactante do ponto de vista dramático: não há como perder a atenção, ainda mais porque, em aceleração gradual, a densidade harmônica intensifica-se, depois ganha predominância rítmica e, perto do final, volta-se ao passado tonal em um inesperado interlúdio de inspiração mahleriana.
No início da récita de terça-feira (2) foi anunciado que o barítono inglês Robin Adams, responsável pelo papel título, estava com faringite, mas isso não comprometeu de modo algum a sua magna performance, tanto vocal como cênica; foram destaques também o tenor Thomas Ebenstein, no papel do Capitão, e a soprano Astrid Kessler, como Marie.
Com a Osesp ocupando quase todo o palco -lembremos que a Sala São Paulo não é um teatro de ópera- sobrava apenas uma estreita faixa frontal para a movimentação dos cantores. Diante de tais limitações, sobressaiu o trabalho preciso do diretor cênico André Heller-Lopes, um especialista nessa linguagem.
Com algumas cadeiras simples e uma de barbearia, um cavalinho de brinquedo, a projeção da lua vermelha no fundo da Sala e a condução segura do movimento cênico, a imaginação é convidada a completar o desenho: tudo está lá, inclusive a taberna -onde tuba, violão, acordeão e violino conversam–, o alojamento do quartel –onde os soldados roncam polifonicamente a cinco vozes-, as emoções extremas de amor, morte, traição, desdém e humilhação, e até o riacho onde Wozzeck, em surto, se afoga.
Feliz é a cidade que tem em cartaz, na mesma semana, versões estupendas de uma ópera barroca de Rameau -“Les Indes Galantes”, no Theatro Municipal-, e, na Sala São Paulo, um dos pontos altos da criação musical do século 20.
No final, após todas as explosões musicais e emocionais, resta ainda lidar com a perpetuação do bullying: sem entender nada, a criança que acabou de perder mãe e pai é sadicamente discriminada, isolada pelas outras para se recolher, sem saída, à solidão, à desrazão, ao ressentimento.
WOZZECK
Avaliação Ótima
Quando Qui. (4), às 19h30; sáb. (6), às 16h30
Onde Sala São Paulo – pça. Júlio Prestes, 16, São Paulo
Preço De R$ 42 a R$ 295



