SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão do ministro Gilmar Mendes que suspendeu regras sobre o impeachment de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) é alvo de críticas por especialistas ouvidos pela reportagem não só por seu conteúdo e potencial impacto, mas também pela forma como foi dada: em decisão monocrática e liminar (provisória) -destinada de modo geral a questões urgentes.
Outro ponto visto como negativo é que o julgamento sobre o assunto tenha sido pautado para o plenário virtual da corte (em que os votos são registrados apenas por escrito), em vez do plenário físico, que permitiria mais debate entre os ministros, além de ampliar a visibilidade dos votos e argumentos mobilizados por cada um deles.
Já em relação ao mérito da decisão de Gilmar Mendes, ainda que com diferenças entre os destaques dados por cada especialista, a crítica geral é a de que o desenho ali definido representa uma blindagem aos ministros do Supremo, gerando um desequilíbrio na separação dos Poderes. Há também quem aponte incongruências nas premissas usadas pelo relator.
Apesar de discordarem da forma e do conteúdo da decisão, esses especialistas não refutam a legitimidade do STF para avaliar se pontos da Lei do Impeachment, inclusive no que se refere às regras para afastamento de seus próprios membros, estariam em desconformidade com a Constituição.
A decisão monocrática de Gilmar Mendes se deu no contexto de duas ações questionando trechos da Lei do Impeachment de 1950, referentes ao afastamento de ministros do STF -bandeira mobilizada pelo bolsonarismo contra a corte.
Ambas foram protocoladas em setembro, uma delas pelo partido Solidariedade e a outra pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros). O ministro pautou o julgamento do mérito das ações no plenário virtual em sessão agendada para começar no próximo dia 12 e se encerrar no dia 19.
Um dos aspectos que gerou mais críticas à decisão está na restrição da legitimidade para oferecimento de pedido de impeachment contra ministro do STF à PGR (Procuradoria-Geral da República), o que até então poderia ser feito por qualquer cidadão. Tal ponto, bem como o deferimento dos pedidos já em caráter de urgência, foi solicitado apenas na ação do Solidariedade, partido comandado pelo deputado Paulinho da Força (SP), que é próximo a ministros do STF.
O advogado e professor da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) Rafael Mafei diz que, apesar de considerar importante que haja uma análise das regras sobre impeachment de ministros do STF à luz da Constituição de 1988, não havia fundamento para que isso fosse feito via medida cautelar.
Ele destaca que, além de a Lei do Impeachment ser de 1950 e estar sob a vigência da atual Constituição há 37 anos, não haveria um risco palpável justificando a urgência. “Não parece que estejamos sob risco iminente de impeachment abusivo de ministro do STF”, diz.
Ele também critica o desenho definido por Gilmar: “A pretexto de defender o tribunal de potenciais abusos, na prática esse desenho tornará o impeachment de ministros do STF uma realidade praticamente inalcançável, aniquilando o único mecanismo de accountability que existe sobre o tribunal”.
Em sua decisão, Gilmar justifica que a extrema urgência estaria presente diante da necessidade de preservar a independência do Judiciário, que, segundo ele, estaria gravemente comprometida, dado que os ministros estariam sujeitos a um regime de responsabilização “parcialmente incompatível com a Constituição”.
Entre outros pontos, o ministro decidiu ainda que, em vez de maioria simples, passa a ser necessário o voto de dois terços dos senadores para a abertura do processo de impeachment. Além disso, suspendeu o afastamento automático do cargo após recebimento da denúncia.
Rubens Glezer, professor da FGV Direito SP, também avalia que não havia fundamento para urgência, tampouco jurisprudência consolidada. “É um caso profundamente controverso, em que o próprio ministro Gilmar Mendes precisa de 70 páginas para justificar essa mudança”, aponta.
Ele defende ainda que uma decisão dessa importância não deveria ser tomada monocraticamente, tampouco no plenário virtual. “Não é só uma blindagem específica, mas um desequilíbrio profundo da relação de separação de Poderes”, diz Glezer.
Para o professor, o desenho estabelecido por Gilmar cria uma blindagem que “praticamente naufraga o controle do impeachment”, destacando, por exemplo, que o afastamento do cargo na abertura do processo deixar de ser automático abre a possibilidade de ministros usarem suas cadeiras para retaliação.
Miguel Gualano de Godoy, professor de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná), tampouco vê fundamentação para a decisão liminar. Ele avalia que a decisão, ao restringir a denúncia à PGR e buscar blindar o STF contra abusos, coloca sob risco também o controle legítimo.
“Essa escolha encurta o circuito democrático de controle sobre o STF, pois esse controle passa a depender de um único ator institucional, a PGR, que, historicamente, tem relação de maior proximidade com o STF”, diz ele, que critica que o processo não esteja pautado para análise no plenário físico.
Ana Laura Pereira Barbosa, professora de direito da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), também não vê justificativa para uma decisão cautelar e avalia que o melhor caminho teria sido encaminhar o caso diretamente para análise do plenário da corte.
Apesar de concordar com as premissas da decisão, no sentido de ser importante tomar medidas para proteger as cortes constitucionais, Ana Laura discorda que elas levem à conclusão de que a Constituição veda que cidadãos possam apresentar pedidos de impeachment, por exemplo, e vê inclusive mais risco em concentrar este poder na PGR.
Ela diz ainda que, ao invés de proteger o Supremo, a decisão pode ter o efeito contrário, tanto por acirrar os ânimos do Legislativo contra o tribunal quanto por alimentar o discurso de que ele estaria ultrapassando os limites.



