SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos arredores da Luz, da Sé, do Bom Retiro, da Liberdade e dos Campos Elíseos, na região central de São Paulo, profissionais de saúde fazem um atendimento intinerante de moradores de rua e dependentes químicos. Carla Leme, 29, é uma das médicas que caminha ao menos oito quilômetros por dia em busca de pacientes que já a reconhecem. Nas redes sociais, ela mostra a rotina do “plantão na cracolândia” e recebe elogios.

Formada pela Univas, em Pouso Alegre (MG), Leme se mudou para São Paulo em 2023 para atuar com a população de rua. “A gente tem a falsa ideia de que a cracolândia foi extinta, mas ela só está dispersa no centro”, diz.

A médica trabalha no programa Redenção, da Prefeitura de São Paulo, em um dos Caps (Centro de Atenção Psicossocial) da região central. Antes, atuou em um complexo do Bom Retiro que abriga uma AMA (Assistência Médica Ambulatorial) e um Caps, próximo a um abrigo e a uma ocupação onde vivem principalmente pessoas trans e imigrantes.

Segundo ela, a rotina consiste em caminhar em busca de pessoas que precisam de atendimento médico ou de outros tipos de ajuda. Quando alguém manifesta interesse em internação no Caps, a equipe aciona um transporte. Quando não querem ajuda, os agentes respeitam e seguem adiante.

Leme relata que já presenciou de tudo nas ruas. Em certa ocasião, encontrou um menino amarrado e o retirou imediatamente da situação.

As principais demandas, tanto na AMA quanto no programa Redenção, são respiratórias, casos de agressão física e overdoses. “Eles vivem gripados, não necessariamente devido ao frio, mas pela imunidade baixa. Também há muito atendimento pós-agressão, com a polícia ou entre eles”, afirma.

Crack, K9, maconha, metanfetamina (cristal) e álcool são as drogas mais frequentes, segundo a médica, que relata atender com frequência casos de intoxicação por uso excessivo.

Leme afirma que há dificuldade em tratar usuários intoxicados com metanfetamina, droga relativamente nova no Brasil. “Eles têm lesões na pele pela reutilização de seringas contaminadas, mas não sabemos exatamente o que causa nem como tratar.”

Pacientes com doenças crônicas ou transmissíveis —principalmente tuberculose e HIV— recebem medicação de uso contínuo com estoque para um mês. “Combinamos de entregar em algumas vielas, ruas ou pontos de venda que sabemos que existem.”

“Quando é algo agudo, fazemos a receita, e a pessoa precisa retirar o remédio na farmácia do SUS, nas AMAs, onde pegam na hora”, diz. Muitas vezes, porém, o paciente não retira o medicamento.

Para ela, as políticas públicas de saúde focam principalmente o tratamento após o início da dependência, e não a prevenção ou a redução de danos. No Brasil, o maior financiamento vai para comunidades terapêuticas, que priorizam abstinência e práticas religiosas, não terapias psicológicas.

“A adicção está 100% ligada à saúde mental. Sempre vejo que o início foi um problema emocional. A pessoa busca um escape”, afirma. Ela diz que moradores de rua e dependentes sofrem estigma da sociedade e de parte dos profissionais de saúde, o que dificulta a busca por atendimento.

“Um dos princípios do SUS é a universalidade, e você deve atender quem chega. Mas há colegas com visão fechada, que olham para dependentes químicos e não veem outro ser humano, veem alguém à margem”, diz.

Quando a médica começou o trabalho em São Paulo, sua família temeu por sua segurança. Como mulher na cracolândia, diz não se sentir totalmente segura, mas conta com a presença da GCM (Guarda Civil Metropolitana), que atua na região.

O assédio sexual é o episódio mais frequente, segundo ela. “Quando uma equipe de mulheres passa, algum usuário diz algo infeliz. A gente fecha a cara e não faz contato visual.” Ela diz que procura agir com racionalidade e afirma que, quanto mais vulneráveis, mais os pacientes tendem a respeitar os profissionais de saúde.

Para Leme, a felicidade é relativa. “Sou feliz. Não sou realizada por causa dos problemas estruturais que impactam meu trabalho, mas tenho muitos sonhos. O difícil é o impacto de sempre estar em contato com histórias pesadas. Não sei se vou chegar a ser [realizada].”

O próximo passo da carreira é seguir estudando e prestar residência em clínica médica e geriatria.