FOLHAPRESS – Em “Cyclone”, Flávia Castro se dispõe a enfrentar dois desafios. O primeiro, de como representar a situação de mulher brasileira há cerca de um século atrás. O segundo, de como representar a época em que ela viveu com pouco dinheiro.

No primeiro caso, a principal referência é a Miss Cyclone, brilhante normalista que frequentou a famosa garçonnière de Oswald de Andrade. Precoce e anticonvencional, torna quase impossível evitar a óbvia constatação de que era uma mulher à frente do seu tempo.

Mas a Miss Cyclone é apenas uma parte da mulher a que se refere o filme. Ambas têm em comum o destino trágico, mas a Cyclone do filme passa por percalços bastante específicos, como o fato de ter os créditos da peça teatral que escrevera roubados pelo seu mentor e diretor do espetáculo.

Já aqui passamos a uma mulher independente, que trabalha como tipógrafa em uma gráfica anarquista. Ali mesmo temos uma bela demonstração do tratamento dado às mulheres da época: um funcionário pretende mostrar a ela como se abre uma gaveta com que ela tinha dificuldade de lidar. O que sobra de empáfia falta de habilidade ao rapaz, que derruba uma caixa inteira de tipos.

Esse tipo de comportamento nos lança para longe de 1920, parece dizer o filme: será que em 2020 as coisas mudaram muito? Ou mudaram ao menos o suficiente?

Um outro problema, este de ordem pessoal, envolve Cyclone: o aborto. Naquele momento, a prática era ainda mais proibida do que é hoje. E a alturas tantas ela engravida.

É um tanto obrigatório questionar a questão feminina tal como o filme propõe. Isto é, uma mulher com vida trágica devido a seus muitos dotes, sobretudo intelectuais, vê-se roubada na autoria de um texto, diminuída em sua condição de trabalhadora e finalmente penalizada pela proibição do aborto.

Nenhuma dessas questões pode ser reputada de nova. A rigor, apenas a primeira pode-se dizer que localiza uma época, mas nem tanto —o nome da autora é suprimido a pretexto de que o nome feminino prejudicaria a bilheteria da peça.

A do tratamento das mulheres pelos homens continua a ser problemática. Basta ver o número de crimes violentos cometidos por homens contra mulheres nos últimos anos. Por fim, o aborto é, como se sabe, alvo preferencial de criminalização, atingindo as mulheres pobres, como é o caso da protagonista.

O segundo problema com o qual o filme tem de lidar é muito mais delicado. A representação de época com dinheiro curto implica fechar a trama no rosto da atriz —Luiza Mariani, que aliás se sai muito bem—, e há uma restrição cenográfica que termina por limitar também o campo de relações de Cyclone, forçada quase sempre a contracenar com duplos com quem ela dialoga, e o campo de visão do espectador: refazer 1920 seria muito caro.

Essa restrição leva à opção pela teatralidade que, no entanto, o filme parece nunca assumir inteiramente. Com isso, o resultado passa a depender em boa parte do público receptor. Para mulheres ainda não familiarizadas com problemas femininos será, sem dúvida, informativo.

Para mulheres que já lutam pelo reconhecimento da sua autonomia e dos direitos usurpados, não acrescenta muita coisa. Ao público em geral talvez soe um tanto decepcionante um filme que começa pela menção a uma mulher realmente excepcional, mas não se fixa em sua trajetória trágica, o que será atribuível, provavelmente, ao orçamento menor do que o necessário; mas a verdade é que quem paga ingresso não tem nada a ver com isso.

CYCLONE

– Avaliação Regular

– Quando Estreia nesta qui. (4) nos cinemas

– Classificação 14 anos

– Elenco Luiza Mariani, Eduardo Moscovis, Karine Teles

– Produção Brasil, 2025

– Direção Flávia Castro