SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Eles eram uma brasileira, uma senegalesa, dois antilhanos e três franceses. Juntos, rodaram o mundo tocando uma música de origem boliviana que, nas mãos de uma mineira, ganhou uma versão à moda paraense.
O Kaoma, do sucesso “Lambada”, representa como poucos os conflituosos e prolíficos diálogos de música popular entre Europa e América Latina, França e Brasil. No ano em que eventos culturais celebram a relação entre estes dois países, contudo, a banda vive apenas como nostalgia e a lambada ressurge no Pará.
“Eu tentei mexer um pouco esse lado França-Brasil, mas os outros músicos estão cansados, o que é normal com 80 anos”, diz Etna Brasyl, cantora à frente da última formação do Kaoma, que resistiu até meados da última década.
Ela assumiu o posto anos após a saída de Loalwa Braz, primeira vocalista do grupo e voz por trás do marcante refrão: “Chorando se foi quem um dia só me fez chorar” única canção em português a ficar entre as 50 mais ouvidas dos Estados Unidos, feito registrado em 1990 pela revista Billboard.
“Cantar todo mundo sabe cantar e muita gente tem a voz bonita, mas o importante numa música é a emoção, e ela passou uma emoção, uma espécie de melancolia na canção”, diz Brasyl. “Tenho certeza de que a música fez sucesso por causa da emoção que ela passou.” Mas há outros fatores que também explicam o estrondoso sucesso de “Lambada”, assim como a ascensão e a queda do Kaoma.
A canção é uma versão de “Llorando se Fue”, música de 1981 gravada pelos irmãos Hermosa, do conjunto Los Kjarkas grupo boliviano que se tornou conhecido mundo afora tocando gêneros do folclore do país, como a saya.
A fonte primária é conhecida nos anos 1990, os compositores processaram os produtores do grupo Kaoma por uso indevido de sua obra. Alegaram roubo, uma vez que a canção fora registrada na Sacem, a Sociedade de Autores, Compositores e Editores de Música uma espécie de Ecad, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, francês sob outro autor, e saíram vitoriosos.
Ocorre que, antes de chegar à França, a música passou pela tríplice fronteira de Brasil, Colômbia e Peru, no estado do Amazonas. Ali, foi abrasileirada por Márcia Ferreira. À época, a cantora era também apresentadora da Rádio Nacional da Amazônia, antena pública que cobria toda a região Norte no encontro entre montanhas, floresta e mar.
“Eu me tornei muito popular na Amazônia Legal e a gente fazia muito evento um desses foi em Tabatinga, em 1985”, lembra Ferreira. “Meus músicos ouviram uma banda colombiana tocando Llorando se Fue em ritmo de cumbia, e voltamos para Brasília com uma fita com essa canção. Resolvi gravá-la com o maestro Mário Campanha no estúdio, e falei para ele: faz um clima de lambada no violão, e comecei a cantar.”
Esse clima já era velho conhecido do norte do Brasil, por onde a artista circulava nos anos 1980. “Lambada era um termo popular na região, significava porrada, pancada”, explica Eduardo Barbosa, músico e pesquisador paraense. “E havia um radialista famoso, Haroldo Caraciolo, que tocava uma sequência de músicas caribenhas no seu programa e falava: vou dar-lhe uma lambada. Em 1976 o Pinduca grava uma música com o título de lambada, e em 1978 o Mestre Vieira grava um disco de lambadas.”
A lambada, então, passa a definir o cruzamento de músicas paraenses protagonizadas por guitarras e um sem fim de sons de países como Haiti, Guadalupe e Martinica. Mambos, merengues, kadans, calypsos: no Gran Caribe que vai das ilhas ao Pará, essas músicas de cordas beliscadas, sopros pronunciados e andamento rápido faziam sucesso e avançavam até cidades como Manaus e Recife.
Cantando em espanhol, francês e creole, conjuntos como Les Aiglons ocupavam as rádios e as festas com canções como “Cuisse La” que no Brasil se tornou “Melô do Tipiti”.
É nesse Brasil onde chegam os donos do selo Celulloid e onde nasce a ideia para o Kaoma. Olivier Lorsac e Jean Karakos buscavam salvar a firma da falência quando deram de cara com a lambada. Os hits radiofônicos, artistas que passeavam do tradicional carimbó ao nascente axé, como Beto Barbosa, e até casas de baile (as “lambaterias”): lá estava o bote salva-vidas da gravadora. A dupla comprou um vasto catálogo de canções do selo brasileiro Continental e voltou a Paris. Só faltava uma banda para gravar, entre outras faixas, a já célebre “Chorando se Foi” rebatizada para “Lambada”.
“Ele queria fazer um clipe dessa música, e falou para a gente que tinha os direitos de gravação, mas eu não estava muito empolgado com a ideia e gravei em poucas horas, de improviso”, lembra Chyco Dru, baixista de Martinica que vivia em Paris e foi convocado por Karakos para a missão ele e os outros músicos, remanescentes da banda Touré Kunda, só precisavam de uma brasileira no vocal. “A Loalwa fez uma audição e conseguiu a vaga porque ela seguiu exatamente o esboço da música que os produtores fizeram.”
Em estúdio, o grupo não se contentou a fazer world music de butique. “Lambamour” é um kadans-lypso cantado em português, “Sindiang” é um reggae com letra em wolof, língua oficial do Senegal, “Jambé Finète” é um lambazouk eletrônico. O Kaoma havia se encontrado ao se aventurar pelo pop do Atlântico Negro. “Eu sou da Martinica, o Jacky, guitarrista, era de Guadalupe, lugares que são um pouco como o Brasil, é a mesma raiz”, diz Dru. “A gente fez uma mistura, e deu certo.”
Os anos seguintes foram de sucesso retumbante. Na França, o grupo surfou uma onda de músicas das Antilhas e da Guiana Francesa que faziam sucesso na capital, das letras de duplo sentido de Francky Vincent aos festejos do grupo La Compagnie Créole cujo single “Le Bal Masqué” foi tema da novela “Bebê a Bordo” em 1988. Logo após a estreia do clipe de “Lambada”, em meados de 1989, o Kaoma ficou doze semanas no topo das paradas francesas.
Nos meses seguintes a banda girou. Fez shows em vários países, inspirou dezenas de outras versões de seu hitdo alemão ao japonês, e chegou ao Brasil com pompa e circunstância, como lembra Dru: lotou o Canecão e foi atração principal no Faustão em 1990, com direito a mais de dez minutos de tela e um pot-pourri.
Poucos meses antes, no mesmo palco, Márcia Ferreira vinha à tona denunciar o que julgava ser uma cópia indevida de sua versão autorizada pelos músicos bolivianos da banda Los Kjarkas. “A gravadora francesa disse que eu não teria mais direito de cantar minha música e só tive ganho de causa dois anos depois, na corte francesa”, lembra ela. “Foi um bom dinheiro à época, e, apesar da polêmica, acho que isso tudo foi algo que nos ajudou: foi preciso uma banda de fora para que valorizássemos a nossa cultura.”
O imbróglio de “Chorando se Foi” ligou o alerta para os músicos do Kaoma, e a relação com a chefia se deteriorou ao longo da década. “Karakos não era honesto, ele vivia fazendo esquemas”, diz Dru. “Entrava muito dinheiro para o Kaoma, mas era para ter entrado muito mais dinheiro para nós, os músicos. A gente fez turnê por anos, estávamos cansados, era frustrante ver esses esquemas.” A formação original da banda se desfez em 1999.
A essa altura, o frenesi do Kaoma e da lambada já tinha deixado marcas no Brasil especialmente no Pará. “Nos anos 1990 teve mais disco de lambada do que nos anos 1970 e 1980, porque havia investimento, muitas bandas gravaram álbuns e coletâneas”, lembra o músico e pesquisador Eduardo Barbosa. “Mas quando cai o Kaoma, começa o declínio da lambada como fenômeno de massa, algo que só vai mudar nos anos 2000 com a lambada instrumental, a guitarrada.”
Nos anos 2000 “lambada” passa a ser uma palavra malquista, termo associado a algo “tosco” e “cafona”, explica Barbosa. “Somente agora o gênero está passando por uma renovação porque estamos fazendo as pazes com muita coisa da nossa cultura a lambada, que é a nossa música mais famosa mundialmente, entra nisso”, diz ele, que toca uma festa do gênero e a banda Lambada Social Clube. “Vejo jovens que frequentam nossas festas e falam com prazer: Eu danço lambada e eu escuto lambada.”
Dru, que no alto dos 80 anos ainda mantém seus dreadlocks vivos, se alegra ao saber da nova fase da lambada: “Melhor assim”, diz ele, entre risadas. Se na França a lambada viveu e morreu com sua banda, no Brasil ela segue viva já a “Lambada”, essa nunca se foi. “Quando eu canto é com a mesma paixão como se fosse em 1989”, lembra Etna Brasyl, a última Kaoma. “É uma melancolia misturada com mulher bonita que sabe dançar, com corpo na praia, com o corpo banhado de sol.”



