BUSAN, GYEONGJU, SEUL, COREIA DO SUL (FOLHAPRESS) – Um ano após a declaração de lei marcial na Coreia do Sul, o país se vê diante do aumento da polarização política e de movimentos que pedem ruptura democrática, enquanto traz lições de resiliência popular e institucional.

Em 3 de dezembro de 2024, em um anúncio televisionado no fim daquela noite, o então presidente Yoon Suk Yeol decretou a lei marcial, uma medida excepcional que restringe atividades políticas e liberdades civis. A decisão levou o Exército para as ruas e incitou protestos contrários à medida.

Em poucas horas, porém, o decreto foi derrubado por uma votação unânime na Assembleia Nacional, e o movimento ficou conhecido como um arroubo autoritário de um governo que, sem apoio parlamentar, quis manter-se no poder com medidas consideradas antidemocráticas.

Hoje, após a declaração e a queda da lei marcial, assim como a prisão do ex-presidente Yoon, a Coreia do Sul também é palco de manifestações que pedem a liberdade do político, a saída do presidente em exercício, Lee Jae-myung, e o fim da suposta influência comunista no país, em uma trama que começa a se alinhar àquelas vistas em democracias em crise.

Nesta terça-feira (2), manhã de quarta (3) na Coreia do Sul, Lee disse em pronunciamento televisionado acreditar que a população sul-coreana merece o Nobel da paz por superar a ameaça à democracia. “Mas o trabalho de faxina depois da lei marcial não terminou: devemos punir os culpados”, afirmou o presidente. “Não podemos permitir que gerações futuras atravessem crise semelhante.”

Em cerca de uma semana na Coreia do Sul, a reportagem da Folha presenciou protestos na capital do país, Seul, na cidade litorânea de Busan e em Gyeongju, onde também ocorria a cúpula da Apec (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, em português). Na manifestação ocorrida às margens das reuniões, que contou com a participação do presidente americano, Donald Trump, os participantes pediam a libertação de Yoon, a prisão de Lee e a ajuda dos Estados Unidos para acabar com a suposta influência comunista.

A estudante de enfermagem Jina Pyo, 30, fazia parte do grupo que tomou as ruas de Gyeongju, pequeno município no sudeste do país, enquanto os principais líderes da região se reuniam em uma série de eventos e negociações.

A jovem segurava um megafone que se somava a um coro de reivindicações. “Eu não aceito o presidente Lee. Eu acho que ele é um comunista e nem quero chamá-lo de presidente. É um presidente falso”, disse à Folha de S.Paulo.

Questionada se o protesto também buscava chamar a atenção de Trump, Jina respondeu que sim. Ela afirmou ainda que existem “muitas provas” de que as eleições que alçaram Lee ao poder tiveram interferência da China.

A Comissão Nacional Eleitoral do país, responsável pela eleição, porém, afirmou repetidas vezes que seu sistema não pode ser acessado do exterior.

Segundo Seungwoo Han, professor do departamento de ciência política e relações internacionais da Universidade Kyonggi, até mesmo autoridades nomeadas durante um governo conservador afirmaram que uma fraude era impossível dentro do atual sistema.

“Apesar desses fatos, a desinformação frequentemente persiste em ambientes altamente polarizados. Mas é importante enfatizar que tais crenças são restritas a um segmento muito pequeno da sociedade, não aos eleitores conservadores tradicionais nem ao eleitorado em geral”, diz.

As manifestações, que ganharam força após o decreto de lei marcial, começaram anos antes, em 2017, quando a ex-presidente Park Geun-hye sofreu impeachment após um escândalo de corrupção. Na época, milhares de apoiadores da política foram às ruas contestar o impedimento. Os protestos, que foram violentos, causaram mortes.

Naquele momento, já era comum ver as bandeiras dos EUA e da Coreia do Sul hasteadas juntas nas manifestações, de acordo com Seungwoo.

“Esse episódio catalisou um segmento da direita em um grupo mais organizado e altamente mobilizado, que passou a ser conhecido informalmente como os protestos ‘Taegukgi’ [bandeira nacional, em português]. Eles ocupam uma posição muito à direita do bloco conservador tradicional e, frequentemente, adotam narrativas mais conspiratórias ou antiesquerda”, diz o docente.

Joh Dongeun, professor de direito da Universidade Nacional de Seul, afirma que os grupos nascidos após o impedimento de Park seguiram um percurso que os transformou nos apoiadores do presidente preso –e que eles têm sido bem-sucedidos ao organizar manifestações contínuas.

“Havia um segmento da população que achava que isso era gravemente errado e que a presidente Park deveria ser reintegrada, e eles formaram um grupo dissidente organizado dentro do espectro político. E, de alguma forma, conseguiram se reorganizar até o evento do ano passado”, diz ele.

Acadêmicos sul-coreanos ainda batem cabeça para entender se a democracia do país sai, de fato, mais forte. Um exemplo é o incidente que ocorreu em janeiro deste ano, quando manifestantes atacaram o prédio do Tribunal Distrital Ocidental de Seul após uma medida que estendeu a prisão de Yoon por risco de destruição de evidências.

Segundo o jornal local Korea Times, participantes escalaram os muros do tribunal, quebraram janelas, arrombaram portas e lançaram extintores de incêndio, causando grande dano ao prédio público.

Ao mesmo tempo, há consenso de que o evento mostrou a resiliência democrática de instituições e da população. A derrubada da medida e o impedimento do presidente seguiram o rito constitucional e avançaram rapidamente, enquanto manifestantes foram às ruas enfrentar o Exército ao se colocar na frente de tanques e barrar a entrada de soldados na Assembleia Nacional.

Joh quer ver a medida como algo isolado, mas tendências de instabilidade do sistema presidencial do país causam dúvidas.

“Eu certamente espero que a democracia coreana saia mais forte desta crise. Mas não se pode ter tanta certeza. Nós testemunhamos a determinação dos cidadãos em proteger e manter a democracia. Mas também percebemos que há tendências muito preocupantes de polarização e de mobilização em massa dos dois lados.”

O presidente Lee deu sua própria opinião sobre o tema no pronunciamento desta terça. “O ano que passou prova a resiliência da democracia do nosso país”, afirmou. “O dia 3 de dezembro será um feriado nacional.”