PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Criança carinhosa, apaixonado por animais e alvo de pessoas mal-intencionadas. É assim que a conselheira tutelar Verônica Oliveira lembra de Gerson de Melo Machado, 19, jovem que morreu neste domingo (30) após ser atacado por uma leoa em um zoológico em João Pessoa (PB).
Verônica conheceu Gerson em 2017, quando ele chegou ao conselho tutelar do bairro de Mangabeira acompanhado por agentes da Polícia Rodoviária Federal, que o encontraram andando sozinho em uma rodovia. Ele tinha 10 anos.
Foi o início de uma relação próxima, na qual Verônica acompanhou de perto a sucessão de desafios e situações inusitadas na vida de Gerson.
Para ela, a definição perfeita foi feita pelo padre José Carlos Serafini durante o velório, nesta segunda-feira (1º): “Gerson era o João Grilo de Ariano Suassuna, do Auto da Compadecida. Ele era exatamente isso. Ele tinha ideias mirabolantes.”
Um dia, Verônica foi avisada de que ele havia sido pego passeando com um cavalo roubado pelas ruas do bairro onde morava. Foi a primeira de muitas ligações recebidas pelo conselho tutelar relatando a mesma situação. “Quando ele via um cavalo pastando em algum lugar, ele pegava o cavalo e ia andar, e depois deixava no mesmo lugar”, conta.
Aos 12 anos, atravessou parte da cidade de jumento e foi até a Estação Ciência, ponto turístico na orla da capital paraibana. Só aceitou voltar ao acolhimento após ter a garantia de um funcionário da prefeitura de que o animal seria bem cuidado.
“Ele roubava os cavalos, roubava os jumentinhos, era uma forma de se locomover. Ele gostava muito de andar pela cidade”, diz a conselheira Patrícia Falcão, que foi buscá-lo naquele dia. O gosto pela montaria e os passeios frequentes lhe renderam nas ruas o apelido irônico de “vaqueirinho”.
Gerson também passou a ser conhecido por vídeos que circulavam nas redes sociais, nos quais aparecia demonstrando algum comportamento ou discurso incomum, tornando-se alvo de piadas e xingamentos.
“Ele não gostava de ser chamado de vaqueirinho, mas ele aceitava e falava, porque era uma forma de ele ser visto”, diz Verônica. “As pessoas usavam ele para ganhar likes, então incentivavam. Ele não tinha capacidade de pensar ‘vou fazer isso para aparecer’.”
“Ele falava coisas muito imaginárias. Ele tinha esses sonhos gigantescos, e as pessoas faziam chacota”, afirma Patrícia.
Com os anos, começaram a chegar relatos de problemas com a lei. Assaltantes da região onde Gerson morava o ensinaram a ligar motos e começaram a usá-lo para furtos. “E ele ia. Ele não era agressivo”, diz Verônica. “É até clichê dizer isso, mas ele era uma pessoa muito pura.”
Gerson passou os primeiros anos de vida morando com a mãe e a avó no bairro Mangabeira, o mais populoso da capital da Paraíba, em uma casa precária.
Foi o único de cinco irmãos que não foi adotado depois que a mãe, esquizofrênica, perdeu a guarda dos filhos. Ele foi acolhido aos 4 anos em uma instituição em Pedras de Fogo, na região metropolitana.
Ainda assim, sempre quis voltar para casa: quando foi encontrado pela PRF na rodovia em 2017, disse ter fugido da instituição para ir a João Pessoa encontrar a mãe.
Há uma suspeita de que Gerson tivesse a mesma condição da mãe, o que nunca foi confirmado devido à dificuldade do diagnóstico em adolescentes.
“A gente lutou muito para que tivesse um laudo para poder ter o tratamento adequado”, diz Patrícia.
Um psiquiatra assinou um laudo que indicava que Gerson, então adolescente, tinha transtorno de desenvolvimento intelectual e poderia pleitear tratamento, com recomendação de acompanhamento intensivo por uma equipe multidisciplinar. Entretanto, ele teve o acesso negado pela Justiça. Segundo as conselheiras, o entendimento seria de que se tratava de um problema comportamental.
Quando fez 18 anos, começaram as prisões: até sua morte, Gerson foi detido 16 vezes por furtos.
Com dificuldades de aprendizado notadas desde cedo, ele não lia e sabia apenas escrever o próprio nome. Seu maior interesse eram animais e, com o tempo, desenvolveu uma atenção especial pelos leões.
“Ele dizia para todo mundo que ia domar os leões na África”, lembra Patrícia.
As conselheiras dizem que nunca conseguiram entender o que motivou esse interesse. Mas foi o que o moveu, em 2023, a abrir caminho na tela de proteção do aeroporto de João Pessoa para tentar entrar no trem de pouso de um avião, quando foi identificado pelas câmeras de segurança.
Para as conselheiras, os desafios enfrentados por Gerson e as circunstâncias trágicas de sua morte chamam a atenção para o abandono de crianças e adolescentes que chegam à fase adulta com transtornos mentais por falta de atendimento especializado na saúde infantil.
“Não queremos que a morte dele seja em vão. Temos muitos Gersons aqui na nossa cidade, com certeza no nosso Brasil, ainda precisando desse atendimento”, diz Patrícia.
“Precisou ele ser morto por um animal. Talvez, se tivesse sido morto por um tiro, teria aparecido nas páginas policiais como o marginal que todo mundo pensava que ele era”, afirma Verônica.



