SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A convivência finita com nossos entes queridos é um fato. Portanto, o luto ao longo da vida é inevitável. Na obra da autora japonesa Banana Yoshimoto, o sofrimento e a solidão não são negados, mas ela também busca retratar a beleza da vida através de detalhes da rotina.
Ao menos é o que Yoshimoto afirma ser seu propósito no posfácio de “Kitchen”, seu romance de estreia, agora republicado no Brasil pela editora Estação Liberdade. Originalmente lançado em 1988, virou best-seller e já foi traduzido para mais de 20 idiomas.
“Kitchen” é um romance dividido em duas partes que acompanha a história de Mikage Sakurai. Após a morte da avó, ela se dá conta de que a cozinha é o único cômodo no qual se sente confortável em casa. Apenas com o motor da geladeira é que consegue adormecer. Diante desse desconforto, ela aceita morar com um conhecido de sua parente, Yuichi Tanabe, e sua mãe, Eriko.
Na primeira parte, acompanhamos a adaptação de Mikage em meio à saudade da convivência com a avó, os novos rituais entre essa família inusitada que se forma e o despertar do interesse da protagonista pela gastronomia.
Pratos típicos nipônicos, como sopa de arroz com ovos e salada de pepino, lámen e katsudon, ganham destaque ao longo da trama, seja no preparo meticuloso ou no próprio consumo, conduzindo o leitor a uma atmosfera reconfortante.
Já na segunda parte, Mikage e Yuichi dividem um novo processo de luto e, entre encontros, nostalgia e ruídos de comunicação, começam a entender as nuances de seu relacionamento. “Conforme fui capaz de entender que desespero não precisa resultar em aniquilamento, consegui levar a vida”, pensa a protagonista em dado momento da narrativa.
Após 37 anos da primeira publicação, Yoshimoto afirma à Folha que considera seu estilo de escrita parecido, mas menos catártico que “Kitchen”. “Quando leio agora, me parece uma obra da minha juventude e dos meus dias de imaturidade”, diz.
A perda também está presente no conto “Moonlight Shadow”, disposto ao final do livro foi a tese de graduação de Yoshimoto. Nesta narrativa, a jovem Satsuki lamenta a morte do namorado em um acidente de carro e almeja uma última despedida.
Três décadas depois, Yoshimoto ainda defende a necessidade de falar sobre o luto na literatura. “É importante adquirir a capacidade de imaginar a dor dos outros, além de tolerar a sua própria. Se perdermos isso, creio que perderemos a maior virtude da humanidade”, diz.
Os enredos flertam com o universo onírico. Em “Kitchen”, por exemplo, os personagens se encontram em um mesmo sonho e, com naturalidade, falam disso ao acordar. “Não é como se a realidade se limitasse àquilo que está diante dos nossos olhos. Vivemos em meio ao mundo dentro de nossas cabeças, ao poder do subconsciente”, diz Yoshimoto.
“Kitchen é sobre uma personagem que precisa lidar com sua vida real, então usei um estilo mais pragmático, enquanto em Moonlight Shadow temos um estilo abstrato que retrata a mente de uma pessoa distraída em uma meia-realidade após a morte de um ente querido. Porém, como eu era jovem, há partes em que essa escrita não funciona tão bem.”
Outro aspecto desta edição de “Kitchen” é que os tradutores Lica Hashimoto, Lui Navarro e Fabio Saldanha citam, entre os desafios deste trabalho, a ausência da marcação de gênero na língua japonesa.
Dessa forma, ao descrever a personagem Eriko, uma mulher transgênero, os tradutores escolheram termos neutros antes da transição e femininos para o resto da trama. Substantivos e pronomes masculinos só foram atribuídos a ela quando escolhidos de forma explícita pela autora.
Sobre a onda de livros de “literatura de cura”, cujos enredos são voltados à busca pela plenitude e ágil resolução de conflitos, Yoshimoto diz não considerar sua obra dentro desse movimento.
Antes, ela já afirmou que acredita que as barreiras entre a literatura tida como séria e a de entretenimento estão mais difusas. A questão é que ela ressalta a dificuldade de pensar em um processo de cura.
“Envolve dor e passa por momentos difíceis até se reestabelecer”, diz. “Não vejo muito sentido em uma literatura apenas reconfortante e gentil, mas acho positivo se houver alguma profundidade que acompanhe isso.”
KITCHEN
– Preço R$ 56 (176 págs.)
– Autoria Banana Yoshimoto
– Editora Estação Liberdade
– Tradução Lica Hashimoto, Lui Navarro e Fabio Saldanha



