RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Em junho deste ano, um balão estilizado cruzou os céus de São Gonçalo, a segunda cidade mais populosa do Rio de Janeiro, exibindo a inscrição Rabicó. O nome faz referência a Antônio Ilário Ferreira, chefe do tráfico no Complexo do Salgueiro, que comemorava 61 anos.

A celebração teve show de LEDs, fogos de artifício e um baile funk cuja entrada exibia uma faixa com as iniciais de Rabicó ao lado do desenho de um homem mais velho, de bigode espesso e coroa na cabeça. Seu reinado no Comando Vermelho já dura mais de três décadas.

Assim como Edgar Alves, o Doca, 55, Rabicó integra o grupo de líderes do tráfico que envelhece em liberdade, escapando de operações policiais enquanto jovens integrantes da facção morrem em confrontos com forças de segurança ou rivais. Doca era o alvo principal da megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão, no mês passado, que terminou com 122 mortes, entre as quais as de cinco policiais. Ele escapou.

De acordo com a polícia, Doca e Rabicó aparecem em fotos ao lado do rapper Oruam, que não se pronunciou sobre o assunto. A reportagem não localizou a defesa atual dos criminosos, que são procurados por diversos crimes como homicídios e tráfico.

Rabicó foi preso em 2008, em Pernambuco. Em 2014, a Polícia Federal encontrou R$ 3,5 milhões em espécie escondidos em tonéis no morro da Mangueira, no Rio. A investigação apontou que o dinheiro pertencia ao traficante, que continuava comandando atividades ilícitas da facção mesmo preso em Bangu. No intervalo de um mês, a mesma investigação apreendeu 20 quilos de barras de ouro, avaliados à época em R$ 2 milhões, ocultos no assoalho da casa de familiares.

Após essas apreensões, ele foi transferido para um presídio de segurança máxima, onde permaneceu até 2019, quando o então ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Marco Aurélio Mello autorizou que ele aguardasse em liberdade o julgamento de um recurso. A Procuradoria tentou reverter a decisão, alegando sua “notória periculosidade” e o risco de desestabilização entre facções.

Já em liberdade, segundo a polícia, ele entrou em conflito com outro traficante que tentava assumir o controle do Salgueiro, provocando uma guerra interna que terminou com a morte do rival.

A reportagem apurou que, no Comando Vermelho, existe uma espécie de “aposentadoria”: líderes deixam de tomar decisões, mas continuam recebendo parte dos lucros de determinadas áreas. É o caso de Wilson Quintanilha, o Abelha, 53, também foragido, que não é mais considerado chefe, mas continuaria arrecadando recursos das comunidades da Lapa, no centro do Rio.

Outros traficantes mantêm atuação sênior na facção há mais de duas décadas e permanecem em liberdade. Entre eles estão Paulinho do Fogueteiro, 47, Pezão do Alemão, 49, Alvarenga, 45, e Scooby-Doo 48.

Para o advogado criminalista Fernando Viggiano, a reincidência de lideranças do tráfico após a obtenção de liberdade condicional ou saída temporária aponta problemas estruturais do sistema penal. “A reincidência de líderes do tráfico após a libertação não decorre apenas da concessão do benefício em si, mas das falhas profundas do sistema penitenciário brasileiro”, afirma.

Segundo ele, embora a progressão de regime seja prevista em lei, o Estado falha no acompanhamento dos egressos. “Falta monitoramento efetivo, uma avaliação criminológica sólida e programas reais de reinserção social”, diz.

Viggiano destaca que, em casos como os de Doca e Rabicó, nem mesmo propostas formais de trabalho são suficientes para romper o vínculo com o crime organizado. “Esses indivíduos mantêm influência mesmo durante a prisão e retornam à liderança porque não há controle externo rigoroso, há deficiência na ressocialização e faltam protocolos específicos para egressos de alta periculosidade”, explica.

“O Estado não consegue aplicar medidas individualizadas, realizar acompanhamento próximo e adotar estratégias eficazes de desligamento da atividade criminosa. Sem isso, um benefício legal acaba se transformando em risco social”, acrescentou.

Em nota, a Seap (Secretaria de Administração Penitenciária) disse que mantém dois programas de remição de pena: remição pelo estudo e pela leitura. Ambos são voltados ao incentivo educacional dentro das unidades prisionais. As ações de trabalho e qualificação profissional são conduzidas pela Fundação Santa Cabrini. Sobre a redução da reincidência, a pasta afirmou que é necessário trabalhar para “ampliar o acesso à educação, fortalecer a rede de apoio ao egresso e incentivar oportunidades no mercado de trabalho”.