LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Os Estados Unidos arriscam se isolar em uma espécie de bloco econômico de si mesmos e não vão conter o crescente protagonismo da China insistindo na imposição de tarifas, como tem feito o presidente Donald Trump.

Nesse cenário, as instituições historicamente lideradas pelos EUA, como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e a OMC (Organização Mundial do Comércio), serão remodeladas por nações que anseiam maior espaço na economia global.

O argumento é do professor William J. Hurst, da Faculdade de Estudos Asiáticos e do Oriente Médio da Universidade de Cambridge. Ele é especialista no desenvolvimento chinês e codiretor do Centro de Geopolítica da instituição. Antes, lecionou na Northwestern e na Universidade de Toronto.

Para Hurst, a China não revisará práticas condenadas por países ocidentais, como a inundação dos mercados globais com produtos subsidiados. “Deixar de manter essas políticas pode, a curto prazo, levar ao colapso [da economia chinesa]”, diz.

Ele conversou com a Folha durante o Web Summit, maior encontro europeu de tecnologia, que ocorreu em Lisboa.

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*Folha – Qual é o objetivo das tarifas americanas impostas contra diferentes países?*

*William J. Hurst -* Acho que existem dois objetivos que podem estar sendo perseguidos pelos EUA. Um é proteger a indústria americana. Nisso, acho que estão mal orientados. O segundo é usar as tarifas e as barreiras comerciais como uma forma de coagir e convencer parceiros comerciais a fazer concessões.

*Folha – As tarifas americanas serão eficazes em interromper a ascensão chinesa no cenário global?*

*William J. Hurst -* Não. Há outros mercados muito mais importantes para a China em quase todos os setores em que ela compete. Notadamente a Asean [grupo de economias do sudeste asiático], que é um parceiro comercial muito mais importante para a China do que os EUA.

*Folha – O economista Paul Krugman afirmou que as tarifas americanas fizeram a China parecer, para os demais países, um parceiro comercial mais confiável do que os EUA. O senhor concorda?*

*William J. Hurst -* Certamente essa é a forma como a China quer se apresentar para o mundo neste momento, porque ela pretende reformar algumas das regras, estruturas e instituições que os Estados Unidos dominaram desde a Segunda Guerra Mundial e que estão abandonando agora.

*Folha – Qual será o resultado dessa reforma, na sua visão?*

*William J. Hurst -* Isso é algo que ainda não sabemos. A China não é o único jogador da partida. Outros países também estão reivindicando maior espaço.

Mas uma das pautas mínimas da China é uma mudança na maneira como as instituições são regidas. A China contribui bastante com o FMI, por exemplo, mas tem pouca representação em termos de votos. Eles gostariam de corrigir isso.

A China foi admitida na OMC em 2001, e desde então existe uma espécie de impasse, com o mundo dividido em três ou quatro blocos. Com os Estados Unidos fora da equação, pode surgir uma oportunidade para que os demais blocos se juntem e façam algum tipo de acordo.

O que emergir será um amálgama negociado a partir do que diferentes nações desejam. A China não vai ditar as regras como os Estados Unidos fizeram desde a Segunda Guerra.

*Folha – Muitos países têm retratado a China como uma ameaça ao Ocidente, numa mudança de retórica com relação ao passado recente, quando exaltavam os benefícios da globalização. O que explica essa mudança?*

*William J. Hurst -* A crise global de 2008 afetou muitos países europeus de forma até mais grave do que os EUA, e havia um forte sentimento de que as bases econômicas dos países ocidentais eram mais fracas do que se pensava.

A China estava em ascensão, tornando-se mais forte política e economicamente. Baseado nisso, começou a haver uma ansiedade sobre essa China cada vez mais poderosa e um Ocidente enfraquecido.

Do início para o meio da década passada, houve uma série de incidentes notáveis de interferência chinesa em processos eleitorais de lugares como a Austrália e o Canadá, que afetaram percepções em muitos países ocidentais, [levando a China] a ser vista de forma mais frequente como um ator malévolo com capacidade de interferência em outros países.

*Folha – Apesar de ser retratada de forma hostil, a China tem uma retórica sobre cooperação internacional mais branda do que a dos Estados Unidos.*

*William J. Hurst -* Até os anos 1970, a China era o que poderíamos chamar de um breaker (“rompedor”, em inglês). Ela entendia a ordem global e as instituições como irreparavelmente sob o controle dos Estados imperialistas e capitalistas que buscavam destruí-la e prejudicar os seus interesses.

Depois dos anos 1970, ocorre uma grande mudança de rumo, e a China se torna um taker (“aceitador”, em inglês). Ela aceita as regras e entende que não vai mudá-las, mas que existe algum espaço para trabalhar dentro dessas regras em benefício próprio.

Agora a China entende que é o momento de começar a moldar novas regras, construir novas estruturas e instituições. E a retórica branda funciona melhor do que a agressividade se você quer atrair parceiros e aliados.

*Folha – Nos países emergentes, muitos veem essa retórica anti-China como fruto do medo americano de perda de hegemonia.*

*William J. Hurst -* No caso dos Estados Unidos, boa parte do pensamento [anti-China] realmente deriva do fato de que a China é o primeiro país a desafiá-los nos últimos 40 anos. Existe muito medo de perda de poder relativo.

Mas, se falarmos de outros países que nunca tiveram essa posição hegemônica, esse fator é menos importante. A ansiedade [com relação à China] vem mais da mudança na dinâmica da geopolítica global.

*Folha – Veremos uma dissociação cada vez maior entre as economias dos EUA e da China?*

*William J. Hurst -* Acho que o risco trazido pela política americana atual é que os Estados Unidos acabem em um bloco de si mesmos, com mínima ou nenhuma integração a redes maiores. Isso seria extremamente prejudicial aos EUA e não muito bom para o resto do mundo.

Penso que há um movimento no sentido de formar blocos ou esferas diferentes, mas existem limites para o quanto isso pode funcionar.

Os países do Sudeste Asiático, por exemplo, especialmente aqueles que mantêm relação comercial mais intensa com a China, estão muito próximos geograficamente e, do ponto de vista econômico, simplesmente não têm escolha. Eles não conseguem se desvincular da China, por mais que os EUA queiram, ou mesmo que tenham receios reais de segurança em relação à China.

*Folha – A China está disposta a abrir mão de práticas comerciais consideradas desleais por parceiros do Ocidente, como a inundação dos mercados com produtos baratos e as políticas de transferência de tecnologia?*

*William J. Hurst -* Não. A política econômica chinesa é voltada para o público doméstico, não para o comércio global. A preocupação do governo chinês é garantir que a economia interna não entre em colapso e permaneça razoavelmente saudável para que eles não tenham que enfrentar uma crise política.

O excesso de capacidade é real, mas não é o objetivo almejado pela China. É o que ocorre quando você vai longe demais na tentativa de aumentar a produção industrial mirando preços baixos para o mercado interno.

E isso continuará a acontecer porque é assim que a economia chinesa está estruturada. Não porque a China tente dominar os mercados mundiais, mas porque precisa manter esse impulso de expansão doméstica para que a economia se sustente internamente.

Portanto, não creio que possam mudar esses elementos. Na verdade, há debates —pelo menos a cada dois anos— dentro da China, entre a liderança política, sobre já ser hora de adotar reformas estruturais mais amplas.

*Folha – Acha que eles farão isso?*

*William J. Hurst -* Não é provável [que o façam] num futuro próximo, porque se trata de equilibrar riscos.

O risco de manter as políticas atuais é que o endividamento agregado é péssimo, o retorno sobre o investimento é dos piores do mundo, [e] a economia está totalmente desequilibrada: investimento em excesso, participação alta demais da manufatura, insuficiência de serviços, concentração excessiva em produtos e serviços de baixo e médio valor agregado.

Mas, por outro lado, deixar de manter essas políticas —deixar de sustentar o sistema e de injetar liquidez— também pode, a curto prazo, levar ao mesmo tipo de colapso. Ou até tornar esse colapso mais provável.

*Raio-X | William J. Hurst*

Professor da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, é doutor em ciência política pela Universidade de Berkeley (Califórnia, EUA), e especialista no desenvolvimento da China e da Indonésia. Antes de lecionar na Inglaterra, foi professor das universidades de Toronto (Canadá), do Texas e Northwestern (EUA).

O jornalista viajou para Lisboa a convite da ApexBrasil