SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Deborah Secco corre numa esteira com uma regata bem apertada, estampada com boquinhas coloridas. Sua pele brilha úmida no decote generoso. “Programa é o caralho, eu faço o que eu quero”, ela brada, nervosa, ao descer do aparelho e acender um cigarro. Aos 46 anos, ela volta a encarnar Raquel, a prostituta Bruna Surfistinha, 14 anos depois do filme que deixou as salas de cinema do país em polvorosa e catapultou a carreira da atriz.

Como essa em que ela reclama sobre fazer programa, as cenas de “Bruna Surfistinha 2” já estão sendo gravadas em São Paulo. Na continuação, Raquel, que no final do primeiro filme para de se prostituir, passa por uma reviravolta em sua vida e considera voltar para o trabalho sexual. Mas o tempo passou também para ela.

O blog em que compartilhava relatos quentíssimos de seus serviços e que a tornou uma celebridade dá lugar a plataformas de conteúdo adulto –como, na vida real, o OnlyFans e o Privacy, nas quais assinantes pagam para ter acesso a vídeos e fotos explícitas publicadas pelos usuários.

Ao questionar os limites do que é prostituição, o segundo filme quer honrar o antecessor, que fez de um tema tabu o assunto do momento em 2011, quando foi lançado. O longa atraiu mais de 2 milhões de pessoas para as salas de cinema naquele ano, cifra considerada excelente para produções nacionais. O fenômeno de público aqueceu, ainda, um amplo debate público sobre a moralidade, a exploração, a indústria do sexo e a sexualidade feminina.

“Bruna Surfistinha” se baseou na história real de Raquel Pacheco, uma garota de classe média alta que escolheu sair de casa para se prostituir. Ela ganhou fama nacional como Bruna Surfistinha ao publicar em seu blog, nos anos 2000, detalhes picantes de seus atendimentos como garota de programa. Ela também escreveu o livro “O Doce Veneno do Escorpião”, no qual descreveu, sem papas na lingua, os abusos psicológicos e físicos enfrentados pelas trabalhadoras do sexo no país.

O filme se tornou um marco cultural ao retratar a prostituição no Brasil pela ótica da trabalhadora sexual, com cenas de nudez e sexo protagonizadas por uma atriz da Globo. As frases impactantes de Bruna, como “hoje eu não vou dar, vou distribuir”, fizeram da personagem um símbolo pop.

Vestindo um roupão branco e bebendo Coca-Cola Zero no set de “Bruna Surfistinha 2”, Deborah Secco conta que decidiu fazer a continuação do filme quando foi ao baile da revista Vogue, em 2023, como Bruna. Ela vestiu um biquíni azul claro, com um short curto e um salto alto da mesma cor, e segurava uma prancha de surfe. Fãs passaram horas na fila para garantir uma foto com a atriz. “Me senti como o Mickey na Disney. Percebi que a personagem era um ícone e ficou maior do que eu imaginava”, lembra a artista.

Hoje é difícil falar de pornografia sem levar em conta empresas de tecnologia como o OnlyFans. Embora não envolvam a prestação direta de serviços sexuais, geralmente funcionando mais como comércio digital de conteúdos eróticos, essas plataformas se relacionam com a lógica da prostituição de troca de sexo por dinheiro e, em alguns casos, encontros físicos podem acontecer depois do contato online. “Hoje tem muito ‘hate’ na internet. Temos uma sociedade muito fragmentada em bolhas de pensamentos distintos”, diz Deborah Secco. “É um ótimo momento para abrirmos esse debate”, afirma a atriz.

O avanço tecnológico também impulsionou debates feministas que, em 2011, não existiam –e ficaram de fora do primeiro longa. “Ajustamos os ponto de vista, porque as preocupações e discussões são diferentes”, diz Marcus Baldini, à frente do primeiro filme e de sua continuação. Numa outra cena de “Bruna Surfistinha 2”, por exemplo, com um short curto e apertado, Secco encarna Bruna e grava um vídeo com o celular, no qual ensina mulheres a se estimularem para sentir prazer durante o sexo.

A história de “Bruna Surfistinha 2” é totalmente fictícia, ainda que tenha um ou outro acontecimento inspirado na vida real de Raquel Pacheco, a Bruna da vida real, que liga para Secco de vez em quando para contar algum causo. No primeiro longa, Raquel, antes de ser Bruna, tem uma relação distante com os pais e é motivo de chacota na escola.

Ela sai de casa aos 17 anos, depois de um garoto vazar uma foto sua fazendo sexo oral, e vai para um bordel, onde começa a fazer programa e faz amizade com outras mulheres na mesma situação. De alguma forma, a prostituição parece satisfazer suas carências emocionais.

O filme não saiu ileso de críticas. Algumas pessoas apontaram um excesso de cenas sensuais para atiçar a curiosidade do público, sem se aprofundar nas motivações de Raquel. “Eu nunca fiz da Raquel uma heroína. Ela escolheu se colocar nesse lugar de sofrimento e dor mesmo. Não fizemos cenas de sexo para ser erótico. Precisávamos mostrar o desconforto dessa menina que atendia oito caras por dia”, comenta Secco, sobre as avaliações. “Foi difícil entregar a realidade dela sem fazer um ‘pornozão’, porque é uma história sobre exploração física”, completa.

Agora, nas filmagens de “Bruna Surfistinha 2”, uma coordenadora de intimidade acompanha as cenas de sexo. A presença desse profissional nos sets aumentou após o MeToo, movimento de mulheres que expôs os assédios sexuais de atrizes nos bastidores da indústria cinematográfica americana. Secco, porém, afirma que não sentiu desconforto durante as passagens picantes do primeiro filme –para ela, todas tinham propósito narrativo.

Já o receio de aceitar o papel foi grande. “Eu tinha medo de virar uma atriz estereotipada, que minha carreira ficasse marcada para sempre”, lembra Secco. Mas ela tinha acabado de pedir um ano sabático à Globo para fazer cinema, e a oportunidade batia à porta. Ela conta que ligou para a mãe e para alguns cineastas de sua confiança, Guel Arraes, Jorge Furtado e Daniel Filho. “Todos falaram ‘não faz'”, diz. Quando se deu conta, já tinha assinado o contrato e estava ensaiando.

Na época, ela não escapou de comentários machistas e, por vezes, depreciativos. Mas, hoje, ela diz estar blindada. “Me sinto mais forte, como se tivesse criado uma capa protetora para as dificuldades que a vida pública oferece.”

Questionada se teria aceitado o papel pela primeira vez com mais tranquilidade nos dias de hoje, ela é categórica. “Ainda não. Muitas coisas evoluíram, mas acho que estamos em uma onda de conservadorismo muito forte.”

Com “Bruna Surfistinha”, Secco empilhou prêmios de atuação. Foi a celebridade mais citada pela imprensa em 2011 e eleita a mulher mais sexy do mundo pela VIP, revista masculina que não existe mais. Depois, viajou a Hollywood incentivada por Steven Spielberg e, ao voltar para o Brasil, acumulou papéis em novelas da Globo. “Acho que essa história era para ser minha mesmo, sei lá, algo cármico”, reflete.

Ao incorporar Raquel, a atriz encontrou semelhanças com a mulher. “Cresci não sendo a garota mais popular da escola, como a Bruna. Eu era a menina feia da família. Quando a minha carreira me levou para esse lugar de mulher bonita, que eu nunca me achei, foi ótimo, até que começou a ficar ruim. Você entra em uma luta para provar que também é boa no que faz, e não só bonita.”

Secco já tinha se tornado um sex symbol anos antes de “Bruna Surfistinha”, quando, em 1999, aos 20 anos, posou nua para a Playboy. Antes disso, ela tinha feito papéis mais masculinizados, como a moleca Carol de “Confissões de Adolescente” ou a Bárbara de “Vira Lata”, que se disfarça de rapaz por boa parte do enredo. Em 2002, a atriz fez novas fotos para a revista masculina.

Os ensaios asseguraram estabilidade financeira para a sua família, diz Secco. “Comprei três apartamentos, um para mim, um para minha irmã e outro para meu irmão. Não era fácil, confortável. Diferente do filme, era eu, a Deborah, que estava exposta ali.”

O dinheiro foi uma segurança para alguém que queria apostar tudo na carreira de atriz. “Cresci assistindo a ‘Uma Linda Mulher’. O meu sonho era ser aquela garota que carrega sacolas com o dinheiro do ‘boy’. Mas, em algum momento, entendi que eu devia sonhar em ser uma mulher independente, em pagar minhas próprias sacolas, em ter um trabalho que me realizasse e que eu não fosse objetificada ou explorada”, lembra.

“Hoje não quero mais provar nada para ninguém”, afirma Secco. Sua preocupação é a filha, de dez anos. Nos primeiros anos de vida da menina, a atriz se sentia impotente por não poder preservar a cria de um mundo pouco gentil com as meninas, angústia que agora vai levando no dia a dia. Como afirmaram recentemente outras artistas que passaram da meia-idade, como Fernanda Torres e Kate Winslet, Secco diz, serena, que a segurança chega mais tarde para as mulheres.