SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há 30 anos, por obra norte-americana, partículas extremamente pequenas, cerca de mil vezes menores que uma célula do sangue, são aplicadas no organismo para carregar medicamentos capazes de combater tumores cancerígenos com muita eficácia. Mas foi uma brasileira, de Goiás, quem pensou em um método que utiliza o caminho contrário.

A pesquisadora em farmácia Eliana Martins Lima, professora doutora da UFG (Universidade Federal de Goiás), resolveu testar, em um programa de mestrado, um modelo em que nanoestruturas retirassem do organismo substâncias intoxicantes em excesso. Essas substâncias poderiam levar à morte, como nos casos de overdose. O teste deu certo.

Eliana, que já orientou mais de 80 trabalhos de pós-graduação e foi pesquisadora visitante do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), estuda, desde o começo dos anos 1990, o uso de partículas chamadas lipossomas para transportar fármacos para regiões difíceis do corpo.

Em seu maior feito da carreira, de acordo com ela mesma, a professora conseguiu preparar os lipossomas —vesículas microscópicas com membrana e cavidade aquosa— para capturar substâncias intoxicantes que se deseja remover como alguns anestésicos e drogas de abuso, em um processo de afinidade química.

A partícula é preparada para circular por várias horas na corrente sanguínea e para não deixar escapar a substância que foi pega a partir de uma modificação em sua composição chamada de protonação.

“Dentro de uma vesícula, a substância não mais está disponível para causar os efeitos tóxicos, cardíacos e neurológicos. Isso dá tempo para que, na emergência, se possa tratar os sintomas e reduzir o custo hospitalar, reduzir sequelas e salvar a vida do indivíduo”, afirma Eliana.

As partículas capturadas (cerca de 70%) são direcionadas para o fígado, que metaboliza e descarta o material.

Em ratos com peso médio de 250 gramas, dentro do laboratório, o processo de salvamento após a intoxicação acontecia em cerca de 30 segundos, com a retomada de sinais vitais normalizados. Em 100% dos animais testados o retorno aconteceu em no máximo dois minutos.

A overdose acontece quando se consome uma quantidade de drogas maior do que o corpo consegue suportar, causando alterações graves no funcionamento do organismo. Pode ser causada por drogas ilícitas, álcool, medicamentos prescritos ou remédios vendidos sem receita.

Não foi possível verificar eventuais sequelas neurológicas nos ratos. A vida dos animais, contudo, seguiu normal em todos os quesitos por 30 dias, o máximo que o protocolo do estudo permitia. Os sinais vitais foram monitorados por cinco dias e se mantiveram normalizados. Eles se alimentaram e ganharam peso e tiveram comportamento sem alterações.

A patente do método já foi requerida pela UFG e pelo laboratório Cristália, que se associou à pesquisa para uma futura aplicação da formulação em humanos. A cocaína usada no estudo foi liberada pela Polícia Federal.

Até agora, a empresa já investiu R$ 6 milhões e se prepara para pedir à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a liberação da pesquisa clínica da inovação. A expectativa é que isso ocorra no primeiro trimestre do ano que vem. O objetivo inicial são testes de intoxicação pelo abuso de cocaína.

“Estamos entendendo, com diálogos em secretarias de Saúde e Caps [Centro de Atenção Psicossocial], a epidemiologia das intoxicações para saber exatamente como fazer o trabalho. Trata-se de uma inovação radical, com impacto na saúde pública, e estamos trabalhando com muita responsabilidade nisso”, afirma Rogério Almeida, vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento da farmacêutica.

De acordo com a pesquisadora da UFG, a formulação tem potencial, ainda não totalmente verificado, para atuar em casos de ingestão excessiva de medicamentos e anestésicos, além de diversos tipos de drogas.

“São poucas as pessoas que conseguem hoje respirar este ar que eu estou respirando. De ver aquilo que saiu do meu laboratório e se tornou mais do que um artigo publicado, uma tese defendida. São pessoas que estão sendo muito bem formadas e um produto que pode ir para os laboratórios, para os hospitais, para as ambulâncias, para as salas de emergência”, diz a pesquisadora.

O médico Quirino Cordeiro Júnior, chefe do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e diretor do HUB de Cuidados em Crack e outras Drogas, do governo paulista, explica que o paciente que passa por um quadro de overdose corre riscos graves, ligados principalmente a sequelas neurológicas e psiquiátricas.

“Um dos principais motivos de preocupação são os danos que ocorrem quando o cérebro sofre com a falta de oxigênio. Esse processo pode causar dificuldade de atenção e concentração permanentes, por exemplo, além de fraquezas e tremores no corpo. Nos casos mais graves o paciente pode até mesmo entrar em coma”, afirma o médico.

Os quadros de overdose, segundo Cordeiro Júnior, podem causar —a depender da substância e da quantidade consumida— arritmia cardíaca, pressão alta, risco de AVC e insuficiência no fígado, entre muitas outras comorbidades.

A pesquisa “Mortes por overdose do drogas no Brasil entre 2000 e 2020”, realizada por um grupo de especialistas da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) com base no Sistema de Informações sobre Mortalidade, chegou a uma média de quase mil mortes por overdose por ano.

A estimativa da Cristália é que os primeiros testes com humanos sejam realizados no primeiro semestre de 2026.

“Isso tudo não só me emociona como é uma recompensa sem medida. Uma indústria brasileira veio atrás de uma professora cientista numa universidade pública brasileira. É, talvez, o ápice da minha carreira”, diz Eliana.