SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Há pelo menos duas maneiras de enxergar a recente declaração oficial do Vaticano sobre o papel de Maria, mãe de Jesus, na fé católica. De um lado, ela faz parte de um processo milenar de reflexão teológica e devoção popular sobre a “Virgem de Nazaré”. Essa evolução, muitas vezes, levou a divisões entre os grupos cristãos –divisões que a Igreja Católica moderna busca sanar, na medida do possível.

Por outro lado, o debate doutrinário também pode ter algum impacto sobre as rusgas atuais dentro do próprio catolicismo e, nesse caso, a decisão representada pelo novo documento pode não ser tão apaziguadora para certos fiéis.

No primeiro caso, é importante lembrar que as crenças sobre a Virgem Maria demoraram bastante tempo para ser formuladas. Durante os dois ou três séculos iniciais do cristianismo, os principais debates giraram em torno da natureza de Jesus e de sua relação com Deus. A reflexão mais detalhada sobre a figura de Maria veio um pouco mais tarde, chegando à definição oficial de que ela deveria ser vista como “Theotôkos” -em grego, “aquela que dá à luz Deus”- numa reunião de líderes da igreja que aconteceu no ano 431.

Essa primeira decisão já causou desconforto entre certos religiosos, para quem não seria correto misturar a gestação humana de Jesus no ventre de Maria e a natureza divina de Cristo, já que uma mulher não seria capaz de ser “mãe de Deus”. Apesar disso, a ideia foi aceita pela maioria dos cristãos, assim como a ideia da virgindade perpétua de Maria, segundo a qual ela teria permanecido intocada mesmo após o nascimento de Jesus.

Com o passar do tempo, enquanto as igrejas ortodoxas (na Europa Oriental, Oriente Médio e norte da África) mantiveram apenas esses dois dogmas, a Igreja Católica, no Ocidente, passou a desenvolver novas abordagens e devoções sobre Maria ao longo da Idade Média.

Quando as igrejas protestantes surgiram, no século 16, quase todas elas deixaram de lado a reverência à figura da mãe de Cristo, enquanto os católicos reforçaram esse aspecto de sua teologia. Isso culminou com a definição oficial do dogma da Imaculada Conceição, em 1854 (segundo ele, Maria estaria isenta do “pecado original”, um tipo de corrupção espiritual que afetaria todos os seres humanos desde a concepção); e, por fim, com o dogma da Assunção, segundo o qual ela teria sido levada ao céu de corpo e alma, proclamado em 1950.

Para teólogos cristãos que não são católicos, o risco por trás desses diversos dogmas é colocar Maria num patamar muito superior a qualquer outro ser humano, numa condição quase divina. Mas o elemento essencial da fé cristã é o monoteísmo, ou seja, a crença de que existe apenas um único Deus verdadeiro, manifestado em Jesus Cristo quando ele teria se “encarnado”, ou seja, quando se tornou humano. Elevar Maria dessa maneira, portanto, seria uma contradição perigosa.

Sabendo que esse tipo de crítica precisa ser levado a sério e que ele tem um impacto importante no diálogo dos católicos com outras igrejas cristãs, o Dicastério para a Doutrina da Fé, órgão do Vaticano responsável pelo documento, posicionou-se contra títulos dados a Maria que a colocariam num patamar ainda mais elevado.

Um desses títulos é o de “corredentora”. Ou seja, Maria estaria lado a lado com Jesus no ato de salvar toda a humanidade. O outro, “medianeira de todas as graças”, indicaria que ela atuaria como intermediária junto a Deus em todas as situações nas quais ele concede sua benevolência aos seres humanos, facilitando o que alguém pede numa oração, por exemplo. O perigo de transformar essas ideias em dogma, ou seja, numa crença obrigatória para os católicos, seria igualar Maria à figura divina de Jesus.

A oposição a essas ideias não se define por uma simples oposição entre teólogos “conservadores” e “progressistas”. Enquanto o papa João Paulo 2º, conservador, chegou a usar esses termos algumas vezes, o então chefe doutrinário de seu papado, o futuro papa Bento 16, também conservador, opôs-se. “O significado preciso dos títulos não é claro e a doutrina neles contida não está madura”, declarou ele em 1996.

O papa Francisco seguiu a linha de Bento 16, e foi o cardeal argentino Víctor Manuel Fernández, indicado por Francisco, o responsável por formular o novo documento. Para o vaticanista americano Charles Collins, do site de notícias católicas Crux, a decisão de Fernández de colocar um ponto final no debate — algo que Bento 16 não fez– pode estar ligada ao apego de grupos católicos ultratradicionalistas a esses títulos de Maria.

Tais grupos estiveram entre os opositores mais ferrenhos do papado de Francisco. Se a inferência estiver correta, trata-se de um indício de que os embates entre os partidários da visão do papa argentino e os grupos ultraconservadores continuam sendo relevantes neste momento.