BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Parlamento do Reino Unido cobrou explicações da BBC a respeito de acusações feitas por um ex-conselheiro editorial de que a emissora pública britânica desrespeitou suas próprias diretrizes e padrões jornalísticos ao manipular discurso do presidente americano, Donald Trump, e ao adotar suposto viés anti-Israel em sua cobertura da guerra na Faixa de Gaza.

O Comitê de Cultura, Mídia e Esporte do Parlamento escreveu ao presidente da emissora, Samir Shah, exigindo esclarecimentos sobre as acusações. “A empresa precisa estabelecer o padrão para reportagens corretas e honestas, especialmente em um ecossistema de mídia em que é fácil demais encontrar notícias apresentadas de uma forma ainda pior que imparcial”, afirmou a parlamentar conservadora Caroline Dinenage, presidente da comissão.

Uma fala de Trump durante seu longo discurso antes da invasão do Capitólio por seus apoiadores em 6 de janeiro de 2021 foi editada pela BBC para acoplar dois trechos quase uma hora distantes entre si e veiculada em um programa da emissora dias antes das eleições americanas de 2024, vencidas por Trump.

A declaração mostrada pela rede foi: “Nós vamos caminhar até o Capitólio e eu estarei lá com vocês. E vamos lutar, vamos lutar com todas as forças”. Além de juntar os trechos distantes entre si no discurso, a declaração veiculada retirou, entre outras frases de Trump, o momento em que o presidente diz aos manifestantes que eles caminhariam “patriótica e pacificamente para fazermos com que escutem nossas vozes”.

“Isso criou a impressão de que Trump disse algo que ele não disse, e, ao fazer isso, materialmente induziu telespectadores ao erro”, afirma Michael Prescott, ex-consultor independente do Comitê de Diretrizes e Padrões Editoriais (EGSC, em inglês) da BBC, em documento interno, direcionado ao conselho da emissora, de acordo com o jornal britânico The Telegraph, que teve acesso ao material.

Citando outro relatório enviado ao EGSC e escrito pelo jornalista da BBC David Grossman, a carta de Prescott também afirma que a emissora propositalmente desrespeitou suas diretrizes na cobertura geral da eleição americana, listando exemplos de pesos considerados exagerados dados a pautas caras a Kamala Harris, rival de Trump, e a pesquisas eleitorais pouco reconhecidas que indicavam vitória da democrata.

A Folha não teve acesso ao documento, de 19 páginas, que foi publicado pelo Telegraph. “Ainda que não comentemos documentos vazados, quando a BBC recebe feedback, leva muito a sério e pondera sobre isso com cuidado”, afirmou porta-voz da emissora. A linguagem adotada pelo governo britânico foi quase idêntica: “Tomamos qualquer crítica aos padrões editoriais da BBC muito seriamente e esperamos que a BBC pondere sobre qualquer feedback recebido de forma séria e cuidadosa”, disse um porta-voz do governo trabalhista de Keir Starmer.

Além das acusações sobre o tratamento dado a Trump, o documento contém ainda uma lista de reportagens e acusações de cobertura supostamente tendenciosa contra Israel sobre a guerra na Faixa de Gaza.

Um dos episódios descritos é o de reportagens da BBC que sugeriam responsabilidade das tropas israelenses por valas comuns contendo cadáveres palestinos nos hospitais Al-Shifa e Nasser, em Gaza, inclusive de corpos com braços amarrados nesses locais.

No documento, Prescott afirma que o EGSC já havia indicado que não havia confirmação independente das acusações sugeridas pelos relatos contidos nas reportagens, e que a própria emissora já havia feito reportagens anteriormente sobre valas comuns cavadas por palestinos nos hospitais.

“Como isso pôde ser esquecido na cobertura subsequente da BBC, que sugeria a ocorrência de algo mais sinistro? A EGSC não recebeu explicações”, afirma o consultor.

Outro ponto levantado são as grandes discrepâncias existentes entre o serviço britânico e o árabe da emissora. São mais de 40 idiomas sob o guarda-chuva do BBC World Service, incluindo em português do Brasil —esses não são regulados pelo Ofcom, o órgão regulador britânicos de comunicações, mas pela própria BBC e pela pasta de Relações Exteriores do país.

O relatório apresenta o caso de Fawzia Amin Sido, mulher da etnia yazidi que havia sido raptada aos 11 anos pelo Estado Islâmico no Iraque e foi encontrada em Gaza por forças israelenses, em operação que teria envolvido também os EUA e outros países da região. O serviço em árabe da rede noticiou o fato com uma longa declaração do grupo terrorista Hamas chamando a notícia de “narrativa falsa” e “história inventada”. No serviço britânico, o comunicado da facção simplesmente não aparecia no texto.

O documento assinado por Prescott lista ainda alguns nomes de pessoas, apresentadas como jornalistas em diversas aparições no serviço em árabe da BBC, que teriam chamado autores de atentados contra civis israelenses de heróis e afirmado que judeus deveriam ser tratados “como fez Hitler”. A emissora, segundo o consultor, disse internamente que os homens eram testemunhas, não jornalistas, embora tenham aparecido em diversos programas do serviço.

“Há claramente questões sistêmicas preocupantes na cobertura da BBC nas áreas listadas acima. Do que pude testemunhar, temo que os problemas podem ser ainda mais disseminados do que este resumo pode sugerir”, afirma Prescott na conclusão do documento revelado pelo Telegraph.

Prescott foi convocado a prestar depoimento ao comitê parlamentar na próxima semana.

As acusações pressionam a BBC, que terá a renovação das diretrizes, objetivos e regulações da emissora previstas pela legislação em 2027 —a revisão ocorre periodicamente. A líder do Partido Conservador, Kemi Badenoch, disse que as acusações são “absolutamente chocantes” e que “cabeças deveriam rolar” na emissora.