SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Imponente edifício de estilo neoclássico, o Theatro da Paz tornou-se símbolo do ciclo da borracha que, nos anos 1800, tanto contribuiu para o desenvolvimento econômico da região amazônica, onde fica Belém. Passados dois séculos, a casa lírica, circundada pela vida citadina, quer incentivar outra relação da humanidade com a natureza, além do extrativismo.

Durante a COP30, vai abrigar a estreia mundial de “I-Juca Pirama”, ópera de Gilberto Gil, Paulo Coelho e Aldo Brizzi, inspirada no poema de Gonçalves Dias, homenageado com um busto logo no foyer do teatro. Também será palco de shows de música popular brasileira, espelhando o frenesi cultural que já toma conta das ruas da capital paraense, com mostras de cinema e de artes plásticas.

As iniciativas integram um movimento mais abrangente, que tem o objetivo de chamar a atenção dos participantes da conferência para as mudanças climáticas. “O que nos interessa é mostrar que os portugueses chegaram aqui, destruíram tudo e, depois de tanto tempo, as florestas ainda pegam fogo”, diz Brizzi, maestro italiano, radicado na Bahia.

Ele conta que Coelho propôs o tema da ópera e passou a escrever o libreto. Depois, Gil compôs a música. O maestro participou de todo o processo criativo, elaborando inclusive a encenação. É curioso pensar que Gil, compositor popular dedicado à ourivesaria da canção, tenha se virado a outros gêneros musicais, seis décadas depois de ter começado a sua carreira.

A rigor, é um movimento iniciado há três anos, quando apresentou, em Paris, “Amor Azul”, sua primeira ópera com Brizzi, inspirada em poemas do hinduísmo. Naquela época, o compositor justificou seu aceno à música clássica pelo desejo de trabalhar com árias, o que só evidenciou as diversas matrizes que compõem a sua musicalidade.

O maestro afirma que em termos de função dramática há uma evolução de “Amor Azul” para “I-Juca Pirama”. A ideia, antes, diz Brizzi, era fazer uma ópera com DNA da MPB. Não por acaso, a primeira obra mais parecia um ciclo de canções, até por não ter sido apresentada ao público com uma encenação. A nova ópera conta a história do guerreiro I-Juca Pirama, interpretado pelo tenor Jean William, que tem a terra devastada e erra pelos territórios à procura de um sentido existencial.

Capturado pelos timbiras, é condenado ao rito antropófago. Na ópera, a ação se desenrola em duas eras: a antiga, da criação de Gonçalves Dias, e a moderna, quando o desmatamento e as queimadas fazem o herói reviver sua jornada. A entidade Espírito da Terra, papel da soprano Graça Reis, faz a mediação entre as duas temporalidades e narra o destino de I-Juca Pirama.

Participam da montagem, além da Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz regida por Brizzi, o Grupo Indígena do Povo Huni Kuin, do Acre, o Coro Carlos Gomes, de Belém, e o Grupo Vocal Lírico-Popular do Núcleo de Ópera da Bahia.

Um dos símbolos do indianismo romântico, o poema carregava uma visão idealizada das populações originárias, o que tenta ser subvertido agora, com a presença indígena em cena e na música. Brizzi diz que o violão de Gil, de onde surgiu a música da ópera, tem aquele pulsar da monofonia ameríndia. “Esse violão tem uma hipnose rítmica, e a orquestra é uma explosão do instrumento dele”, afirma.

“I-Juca Pirama” integra a 24ª edição do Festival de Ópera do Theatro da Paz, em um momento de debates sobre a descentralização de produções do gênero, além do sudeste. “Eu espero que a COP30 lembre o Brasil que nós existimos”, afirma Nandressa Nuñes, diretora de produção do festival. “O Theatro da Paz foi erguido antes mesmo do Municipal de São Paulo e do Rio de Janeiro.”

Nas semanas da COP30, a casa receberá também shows de MPB, com as apresentações de Ney Matogrosso e Lenine, que buscam arrecadar fundos para o Pantanal. Já Fafá de Belém traz o espetáculo “Amazônica”, também beneficente, com canções de autores paraenses. Em paralelo à cúpula, Belém vive um frenesi, com uma série de eventos culturais.

Nas artes visuais, os destaques são as mostras “Amazônia”, com quase duas centenas de fotografias de Sebastião Salgado, expostas no recém-inaugurado Museu das Amazônias, e “Espíritos da Floresta”, do Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU), na Caixa Cultural, que também ganhou uma sede na capital paraense às vésperas da COP. A valorização da arte e do saber ancestral dos povos indígenas é uma tendência que perpassa a produção cultural da atualidade. Em especial, essa tendência é sentida nas mostras de cinema em cartaz em Belém.

Comemorando duas décadas de existência, a Mostra de Cinema da Amazônia exibirá “A Queda do Céu”, filme de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, inspirado no livro do líder yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. A programação tem ainda o novo documentário de João Moreira Salles, “Minha Terra Estrangeira”.

“Nossa ideia é formar público e levar cinema a quem tem pouco acesso”, diz Eduardo Souza, organizador do festival, que ocorre em quatro salas. Em paralelo, Belém recebe a 2ª edição da Mostra Pan-Amazônica de Cinema, com 13 curtas e 8 longas, além de conferências sobre a sétima arte.

Entre as atrações, estão o curta “Boiuna”, de Adriana de Faria, que arrematou três Kikitos no Festival de Gramado deste ano, e o longa “Não Haverá Mais História Sem Nós”, de Priscila Brasil. “De todas as mostras que estão ocorrendo durante a COP, essa é a única seleção que está privilegiando realizadores da Amazônia, e não temas da Amazônia”, afirma o curador Gustavo Soranz.