SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O STJ (Superior Tribunal de Justiça) publicou nesta quinta (6) o acórdão que confirma a obrigação da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) de regular e fiscalizar as empresas que oferecem os chamados cartões de desconto, um mercado de saúde em expansão e que ainda não é regulado.

Por maioria, a Segunda Turma da corte rejeitou os argumentos apresentados pela agência em recurso especial e manteve a decisão de 2023, que reconhece a competência da ANS para regular esse mercado. O processo deve seguir para o STF (Supremo Tribunal Federal).

Os cartões de desconto permitem acesso a consultas, exames, medicamentos e outros serviços de saúde a preços reduzidos mediante o pagamento de uma taxa de adesão ou mensalidade. Estima-se que o setor atenda hoje cerca de 60 milhões de brasileiros, especialmente das classes C e D.

A ANS, que regula planos de saúde com base em um sistema de financiamento coletivo —em que as operadoras assumem riscos financeiros—, sempre sustentou que esses produtos não se enquadram em sua esfera de atuação.

“Os cartões de desconto não oferecem cobertura financeira de risco, pois o custo do serviço é pago diretamente pelo consumidor ao prestador. Portanto, não se trata de plano de saúde nos termos da Lei 9.656/98”, argumentou a agência no processo.

Procurada pela reportagem nesta quinta, a ANS informou aguardaria a publicação da decisão para se manifestar sobre o tema.

No embargo de declaração apresentado ao STJ, a agência afirmou que a decisão judicial anterior havia sido omissa ao ignorar a ausência de base legal que lhe atribuísse competência para regular esse tipo de produto. A ANS também alegou que o Judiciário não pode interferir em suas decisões técnico-administrativas, sob pena de violar a autonomia das agências reguladoras.

As empresas do setor alegam que existem discussões fora da competência do STJ. Segundo Aquiles Vilar, vice-presidente do Cartão de Todos, uma das maiores do setor, não existe “regulação por similaridade”, pois ou a lei autoriza expressamente a regulação ou não autoriza.

LEIA MAIS

“Se a própria ANS entende que os cartões de desconto não poderiam ser regulados pela agência, o Judiciário não poderia impor essa obrigação de criar regulação”, diz.

As empresas dizem também que os cartões representam uma alternativa de acesso à saúde privada para quem não consegue pagar por planos tradicionais e enfrenta filas no SUS. Segundo o setor, a regulação indevida poderia elevar custos e reduzir a oferta desses serviços, atingindo a população de baixa renda.

Para o STJ, as empresas organizarem e oferecerem uma rede credenciada de prestadores de saúde já é suficiente para enquadrar a atividade na esfera de fiscalização da ANS. “O consumidor é a parte vulnerável na relação. Ainda que não exista cobertura securitária, há promessa de acesso a cuidados médicos em rede referenciada, o que justifica a atuação da ANS”, diz a decisão.

O tribunal também observou que a própria agência, em suas comunicações oficiais, já reconhece os riscos e desaconselha a contratação de alguns desses produtos, o que comprova que ela atua de fato no setor.

O relator do caso, ministro Herman Benjamin, destacou que a atividade dessas empresas está sujeita tanto à Lei 9.656/98, que regula os planos de saúde, quanto ao Código de Defesa do Consumidor.

Segundo o texto do acórdão, “os cartões de desconto em serviços de saúde se assemelham aos planos em regime de coparticipação, sendo irrelevante, para fins de proteção do consumidor, o fato de os pagamentos aos profissionais serem realizados diretamente pelos usuários”.

Pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva revela que 72% dos brasileiros da classe C já pagaram ou conhecem alguém que pagou por consultas e exames particulares porque não conseguiram atendimento no SUS. Muitas recorrem às clínicas populares, que também oferecem cartões de desconto.

A decisão tem sido comemorada por entidades de defesa do consumidor, que veem nela um avanço na proteção de usuários. Para elas, a ausência de fiscalização vinha permitindo práticas enganosas.

Especialistas em regulação, porém, apontam desafios práticos. A ANS precisará definir como será feita a fiscalização, já que não há regras específicas sobre esses produtos.

O caso encerra um impasse de mais de dois anos entre o Ministério Público Federal e a ANS. A ação, iniciada em 2022, questionava a omissão da agência na fiscalização das atividades de assistência suplementar à saúde.