SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Vince Gilligan cansou de escrever vilões. Depois de reclamar várias vezes da falta de heróis na televisão atual, chegou a hora do criador de “Breaking Bad” fazer a sua parte. Diante de uma crise global sem precedentes, a protagonista de “Pluribus”, sua nova série, é a única que pode salvar a humanidade.
No rastro de um período de produção envolto em mistérios, Gilligan agora fala sem constrangimento sobre um possível “spoiler” do começo da série, mas que é um exemplo perfeito de como a personagem está longe de ser a mocinha perfeita.
“Eu a vejo como heroína. Porém, no segundo episódio, ela mata mais gente do que Stálin. Não é algo que faz de propósito. Essa é uma das riquezas da vida, ou ao menos da ficção -um universo cheio de grandes ironias. Ao tentar ser uma heroína, Carol causa muito mais dano do que Walter White já causou”, diz Gilligan, orgulhoso ao citar o produtor de metanfetamina que marcou a sua carreira.
Com estreia nesta sexta-feira (7), a ambiciosa atração original do Apple TV+ se afasta do mundo do crime. No lugar de traficantes, psicopatas e advogados de colarinho branco, o também autor de “Better Call Saul” dá espaço a uma colega fictícia de profissão -a escritora Carol Sturka. Responsável por best-sellers de fantasia medieval, ela insiste que os seus livros são irrelevantes. Os fãs parecem insuficientes e sua obra-prima, um romance autoral cujo esboço só confiou à mulher, não tem data para chegar às prateleiras.
Tudo piora quando uma descoberta científica muda a organização da Terra. Em “Pluribus” -palavra em latim para “de muitos”-, pessoas de todo o planeta passam a se comportar como se fossem uma só. Com ritmos, dialetos e habilidades diferentes, elas se reúnem num grupo chamado de Outros, dividem pensamentos e seguem o mesmo objetivo -agradar àqueles que, por algum motivo, não se conectaram com os demais. A harmonia estabelece a paz mundial e de repente todos estão felizes. Ou quase todos.
“No fundo, Carol ama os seus livros. Ao zombar de seus fãs, ela zomba de si mesma. Ela é alguém que implica com absolutamente tudo, como o seu sucesso e as suas próprias ambições”, afirma Rhea Seehorn, intérprete da personagem –a única americana que ainda se comporta de maneira independente.
“Todos os artistas que conheço se lembram dos comentários negativos que receberam, mas têm bastante dificuldade em se lembrar dos positivos. É assustador acreditar em quem diz que você é bom se você não quer acreditar em quem diz que você é ruim.”
Espalhados por países distintos, os imunes à epidemia se aproveitam dos Outros e Carol é a única que desconfia do grupo. Sozinha, ela batalha pelo direito de ser miserável, como descreve Seehorn. É uma causa que a atriz defende. “Diante dessa figura que grita e luta contra tudo, Vince [que também é o diretor dos dois capítulos iniciais] me encorajou a vê-la do modo mais humano possível”, ela diz.
“Existe uma cena em que Carol passa minutos tentando se levantar do chão. São detalhes que a tornam autêntica e geram pontos de identificação. Gosto de pensar que é mais importante oferecer isso ao público do que uma personagem agradável.”
No seriado, as crises de raiva da protagonista ultrapassam o aceitável ao pôr os humanos em risco. No contato com sentimentos extremos, distantes de sua alegria compulsória, os Outros reagem como um organismo único. Os ataques involuntários de Carol conseguem ser fatais e provocar diversas mortes ao redor do continente.
É a essa bomba em formato de gente que cabe restaurar a individualidade. “O que significa ser humano? Desde os princípios da história, desejamos várias coisas. Saúde, prosperidade, vidas longas. Mas, acima de tudo, desejamos a felicidade. Será que estamos buscando a coisa certa?”, diz Gilligan, que conquistou o público e a crítica com dois homens deprimidos, insatisfeitos e para lá de duvidosos.
Em 2008, “Breaking Bad” entrou para o panteão das sagas televisivas com a história de Walter White, professor de química que decide fabricar drogas após descobrir um câncer. Conforme banca o tratamento e acumula uma herança para deixar à família, ele se especializa em manipular e assassinar seus inimigos.
Feita para a TV a cabo -na época, as atrações do tipo não eram tão numerosas e os streamings não eram populares- e sem grandes estrelas no elenco, a obra respeitou o limite de cinco temporadas previsto desde o início. Seu gênio do mal, por sua vez, junto de nomes como Tony Soprano e Darth Vader, é considerado até hoje um dos melhores vilões do entretenimento americano.
Encerrada em 2013, a série venceu 16 troféus no Emmy, virou objeto de estudo na indústria e deixou espaço, na mesma realidade de Walter, para Saul Goodman. Anos antes de conhecer o chefão do tráfico organizado, o advogado de “Better Call Saul” se apaixonava por sua cara-metade, a igualmente trambiqueira Kim Wexler.
Ela amenizou o egocentrismo de Goodman e jogou luz sobre o potencial dramático da mesma Rhea Seehorn –antes disso, os créditos dela se resumiam a comédias e algumas pontas breves.
Foi ali que nasceu a parceria entre a atriz e o roteirista. A aclamação do spin-off não rendeu estatuetas -foram 53 indicações ao maior prêmio da TV, com um total de zero vitórias e centenas de fãs protestando na internet-, mas o elo da dupla segue firme há quase uma década.
“Vince e Peter Gould [um dos criadores de ‘Better Call Saul’] me ensinaram uma lição. Tento sempre ser humilde, mas se isso vira autodepreciação e atrapalha o trabalho, não ajudo ninguém. Tenho feito a mim mesma uma pergunta -‘pessoas muito inteligentes me pediram para estar aqui, então, porque não contribuir em vez de pedir desculpas por estar ocupando espaço?’, diz Seehorn, sorrindo.
Fora da ficção, reflexões como essa separam a artista dos Outros que têm dominado as produtoras. Em 2018, os streamings superaram a produção da TV a cabo. Desde então, entre algoritmos e a inteligência artificial, fórmulas de audiência são cada vez mais comuns. Para evitar riscos, filmes, séries e personagens têm evitado a ambiguidade em nome de traços morais bem definidos.
Diante desse cenário, marcado também pela diminuição das críticas ao governo de Donald Trump, Gilligan mantém a ousadia. Em fevereiro, ao ser homenageado pelo sindicato dos roteiristas americanos, disse que Hollywood havia sido tomada por vilões reais, entre os quais incluiu o presidente. “Esses personagens deveriam servir de alerta, não de inspiração”. Num país polarizado, passava da hora de criar novos heróis.
Nos últimos anos, Gilligan também negou que existiriam planos para novos derivados de “Breaking Bad”, apesar da insistência de parte do fã-clube, e defendeu arduamente a atriz Anna Gunn. Intérprete da mulher de Walter White, ela e a persona foram vítimas de misoginia pelo fato de a personagem contrariar o vilão.
“Sinto que Carol ama seus fãs, mas às vezes tem medo deles. No fim, ela só precisa de amor e respeito, como um deserto precisa de chuva”, diz Gilligan, ao elencar semelhanças entre ele e sua heroína.
Diferentemente dela, o artista não parece ter medo de se conectar com os outros. “Não sei sobre o que ‘Pluribus’ é. Gosto de falar com pessoas que me ajudam a entender o que minhas séries significam.”




