FOLHAPRESS – Uma das fontes mais certas do fantástico é a passagem do animado ao inanimado (e vice-versa). Em “Dollhouse”, ela se apresenta logo de início: em uma brincadeira de esconde-esconde, a pequena Mei entra numa máquina de lavar roupa. Quando a mãe descobre, ela está, evidentemente, morta.

A mãe de imediato ativa outro mecanismo fundamental do terror, que é o sentimento de culpa. Todos o partilhamos ao mesmo tempo em que, racionalmente, sabemos que a mãe não tem culpa alguma. Mas, diante da morte da filha…

O abalo da mulher é absoluto, de nível psiquiátrico, e ela só se cura quando encontra uma bela boneca, Aya, que substitui a filha. Há algo de mágico nisso: o objeto compensa a ausência da filha. Algum tempo depois, o casal tem outra filha, agora chamada Mai. O nascimento provoca algum mal-estar na boneca, que parece sentir-se abandonada.

Ok, mas isso é da ordem da realidade ou da imaginação da mulher? Pode-se dizer que Shinobu Yaguchi, roteirista e diretor do filme, toma alguma liberdade excessiva na passagem entre a alucinação e o mundo real, mas nada que comprometa seu trabalho.

Afinal, Aya já é investida emocionalmente pela mãe desde que é comprada e serve à sua cura. Uma cura entre aspas, veremos com o tempo. E Aya é abandonada depois que chega outra filha. Com o tempo, Mai afeiçoa-se à boneca, e essa amizade vai se revelar bastante complicada, desde que descobrimos que Aya foi criada por um artesão da era Showa —isto é, dos tempos do imperador Hirohito.

Daí por diante, é melhor não entrar nos meandros da história, a não ser para notar sua coerência: o sentimento de culpa da mãe encontrará eco na boneca, que por sua vez tem motivos para odiar a sua filha.

Desde esse momento estaremos imersos na questão do horror derivado do inanimado que se torna animado, algo sobrenatural. A presença e as reações de Aya serão progressivamente mais ameaçadoras, tanto mais que se somam, aqui e ali, às alucinações decorrentes de uma situação em que Mai —a nova filha verdadeira— começa a se tornar por vezes indistinguível da boneca.

Viajamos então no princípio clássico de todos os bonecos aterrorizantes do cinema —e não só. Sua semelhança com os seres vivos tem algo de assustador: é um caso em que a semelhança é bem incômoda. E Aya mostrará, com o tempo, que ela pode ser muito mais incômoda do que supõem a família, os médicos, os monges e os especialistas no caso.

Mas, não importa, o que estará em questão é sempre a maternidade, a responsabilidade materna e a culpa por qualquer distúrbio que atinja os pequenos —o pai é um acessório no filme. Como estamos no Japão, isso envolverá rituais em que o medo do desconhecido —aquilo que Lovecraft, lembrado no livro “Cinema de Horror”, de Laura Cánepa e Rodrigo Carneiro, define como o medo supremo dos humanos— terá papel acentuado.

Do ponto de vista de estrutura, talvez se possa observar como facilidade o fato de a pequena Mai, a segunda filha de verdade do casal, ser um tanto abandonada ao longo da narrativa.

Nada que comprometa profundamente “A Boneca da Casa”, até porque não estamos diante de um filme apelativo —que se vale de sustos e similares—, mas também não estamos diante de um terror mais profundo, como o de certos filmes de Kiyoshi Kurosawa, que não raro parecem querer cutucar a nossa alma de espectadores até sangrar.

DOLLHOUSE

– Avaliação Bom

– Quando Estreia nesta qui. (6) nos cinemas

– Classificação 16 anos

– Elenco Masami Nagasawa, Koji Seto e Ken Yasuda

– Produção Japão, 2025

– Direção Shinobu Yaguchi