SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As mortes do menino Ryan da Silva Andrade Santos, 4, e do adolescente Gregory Ribeiro Vasconcelos, 17, completam um ano nesta quinta-feira (5) com uma investigação sem desfecho, sem que ninguém tenha sido indiciado ou denunciado. Os dois foram mortos por policiais militares no Morro São Bento, em Santos (SP), num caso emblemático do aumento da letalidade policial sob o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos).

O inquérito da Polícia Civil ainda não trouxe resposta para a pergunta mais importante do caso: se eles foram mortos durante uma troca de tiros ou se a polícia agiu sem justificativa legal. Há divergências entre o que dizem policiais, testemunhas e um sobrevivente.

Há um ano, por volta das 20h15 de uma terça-feira, Gregory e um adolescente de 15 anos foram vistos por três PMs da Rocam (Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicleta) andando de moto sem capacete numa das principais vias do bairro. Os policiais seguiram a dupla, que logo depois se deparou com outros três PMs que estavam num carro da Força Tática.

Os adolescentes foram alvo de ao menos 28 disparos de fuzil, espingarda e pistolas. Ryan, que estava num grupo de cerca de dez crianças que brincavam na rua a cerca de 50 metros de distância, foi atingido por uma bala perdida. O jovem de 15 anos, que estava na garupa da moto, levou dois tiros e sobreviveu.

Os PMs envolvidos no caso chegaram a ser afastados da atividade operacional, mas já voltaram ao policiamento nas ruas. A defesa deles preferiu não se manifestar.

Na família de Ryan, a morte deixou um grave impacto psicológico. Manuela, 7, desenvolveu insônia e parou de brincar após perder seu irmão. Certa vez, ela perguntou à mãe se o menino de 4 anos era bandido. João Paulo, 11, mostra-se constantemente revoltado.

“Em vez de nos matarem, em vez de matarem crianças, por que [o Estado] não investe na escola, na educação, na saúde?”, questiona a mãe de Ryan, Beatriz da Silva Rosa, 30. Merendeira, ela diz que falta comida na escola onde trabalha e profissionais qualificados na Unidade de Pronto-Atendimento próxima à sua casa. “Eu quero que eles [autoridades do Judiciário] ajam com sinceridade no processo. Quem fez [provocou a morte] tem de ser punido.”

Já se sabe que o disparo que matou Ryan partiu da espingarda calibre 12 do cabo Clovis Damasceno de Carvalho Junior, 42. A perícia no projétil retirado do corpo indica que ele ricocheteou —num poste, numa parede ou no asfalto— antes de atingir a criança na barriga. Damasceno afirmou que fez sete disparos com a arma para deter os adolescentes.

O exame no corpo de Gregory, por sua vez, mostrou que quatro tiros o acertaram pelas costas, de um total de ao menos sete ferimentos compatíveis com disparos de armas de fogo. A quantidade de tiros e o fato de ter sido atingido por trás é um indicativo de desrespeito aos protocolos de operação e ao treinamento que PMs recebem.

Um número tão grande de tiros só seria admitido se, mesmo ferido, o agressor ainda representasse ameaça aos PMs. Os depoimentos de policiais não fazem menção a nenhum desses procedimentos, nem descrevem se Gregory continuou oferecendo risco após os primeiros disparos.

Eles afirmaram que os tiros foram uma reação a um ataque contra a Rocam. O sobrevivente que estava na garupoa, por outro lado, afirmou que eles estavam desarmados.

Duas testemunhas que estavam no local disseram que não houve troca de tiros, e sim um ataque da PM contra a dupla na motocicleta. Afirmaram, inclusive, que os policiais continuaram atirando quando os adolescentes já estavam caídos no chão.

A autópsia no corpo de Gregory mostra que os tiros o atingiram de direções diferentes —ou seja, o corpo mudou de posição à medida em que foi baleado.

Uma pistola 9 mm e um revólver 38 foram atribuídos aos adolescentes no registro da ocorrência, e cápsulas dos dois calibres foram encontradas pela perícia próximas ao ponto onde os garotos caíram. Eles não foram filmados nem fotografados com o armamento —os PMs não portavam câmeras corporais.

O sobrevivente de 15 anos afirmou, em dois depoimentos, que ele e Gregory se conheciam havia cerca de cinco meses e atuavam no abastecimento de pontos de venda de drogas de Santos. Ele contou que os dois obedeceram a uma ordem de parada dos policiais e colocaram as mãos para cima antes de serem atingidos.

DEFESA PEDIU MAIS PROVAS

Todos os PMs relataram que os policiais da Rocam foram alvo de tiros de criminosos, pediram apoio via rádio, e que a equipe da Força Tática atendeu o chamado e chegou por outra parte do morro. Há divergências em alguns detalhes, como o número de suspeitos vistos na cena e quantos usavam motocicletas.

Os seis policiais diretamente envolvidos optaram por ficar em silêncio na delegacia, mas um boletim feito pela própria PM registrou seus relatos. No 5º Distrito Policial, onde a ocorrência foi registrada pela Polícia Civil, foram ouvidos um sargento e um cabo que não participaram do tiroteio.

Eles disseram que os agentes da Rocam desceram das motos e fizeram uma incursão a pé até o local da ocorrência, que havia cerca de dez pessoas armadas na rua, que outra dupla de suspeitos também usava motocicleta e que a maioria conseguiu fugir por uma área de mata.

Nenhum desses detalhes apareceu nos relatos dos PMs diretamente envolvidos. Os policiais da Força Tática disseram ter visto sete pessoas, e não dez. O boletim da PM não informa o que ocorreu com os outros suspeitos após os disparos.

Para a defesa da família de Gregory, ainda não existe provas suficientes no processo para demonstrar se houve ou não confronto entre policiais e suspeitos. O ponto mais importante é o pedido de complementação do laudo do local da ocorrência.

A defesa pede detalhes mais precisos dos pontos onde foram encontradas cápsulas de armas de fogo, vestígios de sangue, a direção dos disparos, a posição dos PMs e dos adolescentes durante os disparos, os pontos exatos onde marcas de bala foram encontradas.

Questionada, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) afirmou que a autoridade policial aguarda um laudo complementar solicitado pela defesa “para o esclarecimento integral dos fatos e prosseguimento das responsabilizações cabíveis na esfera criminal”. A PM disse que concluiu o inquérito policial militar e “aguarda a manifestação do Ministério Público e a decisão da Justiça Militar para a adoção das medidas cabíveis”.

VELÓRIOS TIVERAM CERCO POLICIAL

As mortes de Ryan e Gregory ganharam repercussão não apenas por causa das idades das vítimas, mas pelo comportamento da polícia nos dias seguintes à ocorrência. No dia 7 de novembro, um cortejo de carros e motos em homenagem a Ryan foi acompanhado por policiais do Batalhão de Choque da PM,

Os policiais chegaram a impedir a passagem dos veículos por alguns minutos em meio a ofensas entre moradores e PMs. O enterro terminou com uma discussão entre o então ouvidor das polícias de São Paulo, Cláudio Aparecido da Silva, políticos e representantes de entidades de defesa dos direitos, de um lado, e homens da Força Tática, de outro.

A confusão começou quando pessoas que participavam do enterro viram uma viatura da Força Tática estacionar em frente à entrada do cemitério.

Já a família de Gregory ficou sem velório e sem o cortejo que havia planejado no bairro onde ele cresceu. A cerimônia foi cancelada devido às condições precárias de conservação do corpo. Familiares e amigos disseram que ele ficou fora do refrigerador durante mais de 24 horas.