SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Jovens transgênero e seus familiares veem a proibição do CFM (Conselho Federal de Medicina) ao tratamento hormonal em menores como injusta e ideológica, com efeitos físicos e psicológicos à saúde.
É o que mostra o estudo pré-print -ainda não publicado em revista científica- “‘I feel under attack’: Transgender Adolescents and Caregivers Opposition to Restrictions on Gender-Affirming Medical Care in Brazil”, que entrevistou adolescentes trans e seus resposnsáveis, realizado por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A resolução 2.427 do CFM, de abril deste ano, proíbe o bloqueio hormonal para mudança de gênero em crianças e adolescentes e aumenta de 18 para 21 anos a idade mínima para realização de cirurgias. A decisão não obriga a interrupção para quem já estava em tratamento, mas impede novos procedimentos.
Alexandre Saadeh, médico psiquiatra do Hospital das Clínicas da USP e coordenador do Amtigos (Ambulatório de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), envolvido na pesquisa, afirma que nenhum pesquisador ou especialista foi consultado para a resolução.
“O CFM afirma que não existem pesquisas suficientes e exigem mais estudos científicos [sobre os tratamentos], mas a proibição dos bloqueadores hormonais impede a realização de novas pesquisas nessa área. Isso é, de certa forma, incongruente”, afirmou.
O estudo brasileiro entrevistou 31 adolescentes transgênero e 21 cuidadores de crianças e adolescentes atendidos no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas da USP (Amtigos) entre maio e junho de 2025.
Um moderador conduziu a discussão seguindo um roteiro de perguntas abertas, entre elas: Como você se sente com a notícia de que o bloqueio da puberdade pode não ser mais possível? O que você acha da justificativa para esta decisão? O que você e seus responsáveis têm conversado sobre essas notícias?
Segundo o estudo, adolescentes trans responderam que se sentem desamparados.
“[…] ao fazer essa lei, estão forçando crianças e adolescentes a viverem em corpos que não pertencem a eles. Não nos encaixamos no corpo com o qual nascemos”, disse o participante identificado como A26.
“A intenção deles não é fazer algo bom para as crianças, proteger as crianças, fazer algo verdadeiramente produtivo, é machucar pessoas, crianças, aumentar as taxas de automutilação ou suicídio”, disse o participante A29.
Já os pais e responsáveis afirmaram que consideram a medida um retrocesso e um ataque.
“Quem é você para decidir o que é melhor para meu filho? Por que você acha que está fazendo algum bem a eles? É horrível. Você se sente impotente às vezes. É revoltante”, disse o participante C8, ainda de acordo com o estudo.
Na visão dos cuidadores, o impacto psicológico de negar acesso a terapias afirmativas de gênero é muito maior do que os riscos da terapia hormonal alegados pelo CFM, como prejuízos para a fertilidade e para o desenvolvimento das crianças e adolescentes.
Os cuidadores citam ainda os riscos de automedicação e dificuldade para inserção no mercado de trabalho e para acesso à saúde e outros direitos.
“A aparência, infelizmente, conta muito. Se você não consegue um emprego, você enfrenta preconceito. É por isso que tantas pessoas trans estão desempregadas. Porque são marginalizadas”, disse o participante C13.
Relator da resolução e conselheiro do CFM, o médico Raphael Câmara criticou a publicação do estudo da USP. Em nota enviada à reportagem, Câmara afirmou que trata-se de “pesquisa sem qualquer nível de evidência publicada num repositório de pré-prints, sem estar numa revista científica avaliada por pares, o que impede qualquer avaliação científica robusta”.
Câmara também criticou a metodologia utilizada. “Chegamos ao absurdo de os resultados do estudo serem o depoimento de uma criança dizendo que a resolução do CFM é ‘ridícula’. Certamente, esperávamos mais de um grupo de pesquisa da USP. O recurso público precisa ser bem usado”, afirmou.
Para o pediatra Pedro Magalhães Mendes, membro do departamento científico de saúde do adolescente da SPSP (Sociedade de Pediatria de São Paulo), as mudanças impostas pela resolução atrasam ou dificultam o acesso a terapias importantes para esses adolescentes, o que pode aumentar o sofrimento psicológico dos pacientes.
“Em vez de bloquear e adiar o acesso às terapias, deveria ter sido adotada uma regulamentação mais participativa, envolvendo entidades representativas e pessoas com variabilidade de gênero para compreender as demandas”, afirmou.
O Reino Unido proibiu em 2024 o uso de bloqueadores hormonais em crianças e adolescentes menores de 18 anos, a menos que façam parte de um ensaio clínico. Um estudo semelhante ao da USP está sendo conduzido no King’s College London para compreender o impacto da medida nos jovens britânicos.
“Este estudo tem como objetivo ouvi-los, compreender suas histórias e suas trajetórias e construir uma base de evidências robusta que reflita essa diversidade”, disse ao The New York Times o médico Michael Absoud, especialista em neurociência pediátrica e um dos principais pesquisadores do estudo inglês.




