SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após oito anos no poder em um regime autoritário, e mais sete entre regime de transição e governo provisório, Getúlio Vargas passou a sofrer pressão de diversos setores políticos, e especialmente das Forças Armadas, para renunciar à Presidência da República em 1945.
Apesar da vontade de seguir no poder, ele precisou escolher um sucessor diante da oposição aberta. Tentou ter controle sobre a transição a um novo regime, sem sucesso, e buscou se aproveitar do queremismo, movimento que pedia sua permanência.
As pretensões do então presidente esbarraram em cisões internas do regime varguista, com interesses diferentes nas eleições. Isso explica a contradição entre a renúncia, a contragosto, e a força da imagem do então ocupante do Palácio do Catete.
Segundo documentos de Getúlio depositados no CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), da FGV (Fundação Getúlio Vargas), ele queria obter um novo mandato presidencial, com uma eleição não competitiva –sem oposição ou com fraude eleitoral.
A ideia era restringir a participação a partir do controle de quem poderia votar -o que impediria a oposição de articular, na política local, a habilitação de eleitores.
Esse plano não tinha apoio de toda a cúpula do Estado Novo e acabou desidratado. Alguns setores do governo já discutiam, à época, candidaturas como as do ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, e da Guerra, Eurico Gaspar Dutra. O brigadeiro Eduardo Gomes também despontava como postulante ao Catete, com mais apoio entre os conservadores.
Temendo a articulação dos militares, já em rota de colisão com o presidente, em torno de Gomes, o governo decidiu lançar a candidatura de Dutra, popular entre as tropas. O objetivo era dividir o apoio dos integrantes das Forças. No entanto, Getúlio não encampou a candidatura de Dutra com entusiasmo.
Os atritos na cúpula do Estado Novo iam além. Oswaldo Aranha era visto como excessivamente liberal e próximo dos Estados Unidos, uma postura que gerava divisões. Enquanto uma ala do governo, incluindo o próprio Dutra, era simpática ao Eixo (a aliança da Alemanha nazista, Itália e Japão na Segunda Guerra Mundial), Aranha fomentou o alinhamento com os Aliados (EUA, Reino Unido e União Soviética).
Visto com desconfiança pela ala mais conservadora do governo, inclusive pelo próprio Dutra, mais simpático ao Eixo, o diplomata se demitiu da chancelaria brasileira em 1944.
Afastado do Catete, ele se aproximou dos fundadores da UDN, partido com tônica conservadora. Em razão do passado com Getúlio, porém, o ex-ministro não conseguiu conquistar espaço na nova legenda. Assim, mesmo sendo considerado um candidato natural, ele desistiu da disputa presidencial e acabou apoiando, de forma discreta, Eduardo Gomes.
A divisão interna das lideranças do Estado Novo também levou à criação de dois partidos, o PSD e o PTB. O primeiro ganhou autonomia e vida própria para além de Getúlio, enquanto o segundo ficou mais ligado ao mandatário.
A autonomia do PSD em relação ao então presidente deu impulso a Dutra, que também apostou na independência política.
Diante do quadro, Getúlio não conseguiu reconstruir a unidade no governo e entre os militares. As Forças Armadas, ao sinal de que o presidente minaria o processo eleitoral, decidiram unir-se para o depor e colocar, em seu lugar, o então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) José Linhares.
No mesmo ano de 1945, Dutra venceu Eduardo Gomes. Getúlio foi eleito no pleito senador pelo Rio Grande do Sul e, ao mesmo tempo, por São Paulo, o que era permitido pela regra eleitoral.
Adriana Salay, professora do departamento de história da USP (Universidade de São Paulo), cita o contexto internacional, com a retórica antifascista e democrática do pós-guerra, como um fator que contribuiu para a crise do Estado Novo.
“Participar da guerra ao lado dos Aliados e, ao mesmo tempo, manter uma ditadura internamente tornou-se contraditório e politicamente custoso”, diz.
Ela afirma que o queremismo tinha força junto a trabalhadores urbanos e setores populares, mas esbarrava em limites como a oposição do Alto Comando militar.
Salay nota que, ao passo que a ditadura do Estado Novo se enfraqueceu, o prestígio pessoal de Getúlio cresceu. “O trabalhismo foi importante justamente nesse processo, para que o ex-presidente alcançasse capital político para voltar na década de 1950”, afirma.
Christian Lynch, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), afirma que a ancoragem de Getúlio no PTB o afastou das forças conservadoras que o sustentaram no governo. Elas passaram a vê-lo com desconfiança, o que culminou em sua deposição.
“A partir de 1943, Vargas já antevia a necessidade de se reinventar como líder de massas, com base no trabalhismo”, diz Lynch, que também é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
“O seu projeto era convocar uma Constituinte sob sua liderança e consolidar um regime de democracia social. A frustração decorreu justamente da resistência das elites e dos militares, que viam nesse projeto uma ameaça ao seu próprio controle do Estado”, afirmou.
Dutra, simbolizava, segundo Lynch, uma transição controlada, com a retomada da democracia sem rompimento com o legado conservador do regime anterior, agora representado pelo PSD.
Para o professor, a derrubada de Getúlio também consolidou o pensamento, entre os fardados, de que as Forças Armadas exerciam poder moderador no país.
“Essa naturalização do papel interventor das Forças Armadas pavimentou o caminho para o golpe de 1964. E, quando ele ocorreu, a classe política ainda acreditava ingenuamente que os militares devolveriam o poder logo em seguida –o que, como sabemos, não aconteceu.”




