RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O delegado Orlando Zaccone, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, ganhou notoriedade nacional ao desmascarar a farsa de que o pedreiro Amarildo de Souza seria traficante.

Em 2013, Amarildo desapareceu após ser levado por policiais militares para a base da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na Rocinha, foi torturado e morto. Investigações conduzidas por Zaccone mostraram que policiais subornaram testemunhas e forjaram provas para despistar sua participação no crime.

“Queriam construir Amarildo como traficante para legitimar o seu desaparecimento e a sua execução, com uma tentativa de fraude de um inquérito que apurava o tráfico. Porque se Amarildo fosse identificado como traficante, o seu desaparecimento e morte não seria crime, seria uma função normal da polícia no Rio de Janeiro”, relembra Zaccone.

Mais de uma década depois, o delegado afirma que a naturalização da morte de traficantes pela polícia está por trás da operação realizada nos complexos da Penha e do Alemão, no Rio, a mais letal da história, com pelo menos 121 mortos.

Para Zaccone, o que houve ali foi uma emboscada para matar os traficantes, uma tática conhecida no Rio como “troia”, em referência à lenda grega do Cavalo de Troia.

“Troia é uma técnica de se preparar homicídios pela polícia. A polícia entra na comunidade com antecedência e espera o momento de fuga de traficantes para matar. Por isso que a polícia do Rio chama traficante de ganso, por causa daquela brincadeira de tiro ao alvo. Então era isso que eles queriam fazer, matar os traficantes em fuga”, afirma em entrevista.

O governo Cláudio Castro e as polícias negam que tenha havido emboscada ou matança e dizem que a tática de confrontar os traficantes na mata foi planejada para evitar tiroteio dentro da comunidade.

Segundo Zaccone, historicamente a polícia do Rio usou o procedimento de simular confrontos com traficantes, porque assim pode-se alegar legítima defesa como causa das mortes. Ele conta que isso ocorreu no caso da chamada Chacina do Borel, em 2003, que ele investigou como delegado.

“Quatro policiais entraram no morro quatro horas antes da operação, se esconderam na laje, e aí na hora que a operação veio, os quatro começaram a atirar. Mas a boca estava inativa no dia, e mataram quem não tinha ligação com o tráfico. Às vezes dá errado, em vez de matarem o ganso, matam um comerciante, um estudante, aí o troia vai por água abaixo. Mas, se [os mortos] fossem traficantes, ficava na conta da operação, foi troca de tiro.”

No entender do delegado, foi o que aconteceu dessa vez. “A novidade agora foi uma troia oficial, anunciada. Vivemos o absurdo de assassinatos dentro da lei. E aí é que vem o debate: existe ou não autorização de se matar pessoas que estão portando a arma? Porque isso legitimaria a ação. Só que hoje, do ponto de vista legal, não há essa autorização, mas ela existe nas formas jurídicas.”

Zaccone se refere à impunidade nos casos de mortes relacionadas ao tráfico. Em sua tese de doutorado em ciência política pela UFF (Universidade Federal Fluminense), em 2013, ele analisou os pedidos de arquivamento pelo Ministério Público, aceitos pela Justiça, de 300 inquéritos policiais conhecidos como “autos de resistência” instaurados entre 2003 a 2009.

“Fui estudar qual era o fundamento dos promotores para caracterizar a legítima defesa. Para a minha surpresa, diziam respeito à condição do morro. Ou seja, no pedido de arquivamento, escrevem que, conforme os antecedentes criminais, o morto respondeu por tráfico, que o fato ocorreu em comunidade favelada onde constantemente tem troca de tiros entre polícia e bandido.”

Zaccone conclui sua tese afirmando que no Rio não existe crime (desvio de função) quando a polícia mata pessoas identificadas como traficantes, e isso é homologado pelo sistema jurídico. “O Estado brasileiro diz que essas mortes estão dentro da lei. E que, no Brasil, essa política de extermínio não é só um desvio de função das polícias -é uma política de Estado.”

No Código Penal, a legítima defesa (“quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”) é um excludente de ilicitude, ou seja, a morte decorrente não vira crime.

“Não existe outra forma de legitimar uma ação letal que não seja pela legítima defesa. Um cara que está fugindo, mas porta um fuzil, do ponto de vista jurídico, se ele não atirar, não se pode alegar legítima defesa. Mas aqui no Rio, desde a época do [ex-governador Wilson] Witzel, criou-se o debate: se está portando uma arma, pode ser morto. Porque querem avançar naquilo que a legislação hoje não autoriza.”

“E aí o debate deixa de ser jurídico e passa a ser político, porque a população tem medo de pessoas armadas, ainda mais de fuzil. Então você legitima a execução de pessoas”, observa o delegado. “Não foi por menos que eles apreenderam aquela quantidade imensa de fuzis [93]. E tem que ser questionado se aqueles fuzis todos foram mesmo apreendidos nesta operação.”

Fundador do movimento Policiais Antifascismo, que reúne profissionais de segurança de esquerda e busca se contrapôr às chamadas “bancadas da bala”, Zaccone aposentou-se como delegado em 2023 e atua como advogado criminalista e presidente da Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Policiais Civis e Militares da OAB-RJ.

Em 2017, resolveu tentar entrar na política, filiando-se ao PSOL, pelo qual disputou a eleição de 2018 para deputado estadual –não se elegeu. Mudou-se para o PDT, disputando a eleição de 2022 para deputado federal -também não teve sucesso. Segue no partido, mas diz que não será candidato em 2026.

GOVERNO DO RIO DIZ QUE ESTRATÉGIA MINIMIZOU DANOS

O governo e as polícias do RJ defenderam a legalidade da operação e justificaram as táticas empregadas. O deslocamento do confronto com traficantes para áreas de mata, disseram, foi uma estratégia para minimizar os chamados “danos colaterais” –mortes de moradores sem envolvimento com o crime.

“Foi pensado para que a população sentisse o mínimo possível”, afirmou o governador Cláudio Castro em entrevista coletiva.

Segundo o secretário da PM, coronel Marcelo Menezes, o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) fez uma espécie de muro: policiais caminharam até a serra da Misericórdia e cercaram os suspeitos para a mata, onde havia outro grupo do Bope aguardando.

“O que a gente fez de diferente nessa operação foi a incursão de homens do Bope na área mais alta da montanha, (…) criando o que a gente chamou de muro do Bope, ou seja, policiais incursionados nessa área, fazendo com que os marginais fossem empurrados”, disse.

O governo atribuiu aos próprios traficantes os indícios de assassinatos, como mortos degolados.

“Quem disse que foi a polícia que cortou a cabeça dele? Nós instauramos inquérito para apurar o crime de fraude processual pela remoção indevida e ilegal desses corpos”, disse o secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, cujo nome tem sido cogitado como pré-candidato a governador.

A polícia, declarou Curi, identificou que “alguns veículos utilizados [para resgatar os corpos] eram roubados” e que aqueles que fizeram a remoção podem ter feito novas lesões. “E justamente eles podem até ter feito isso para chamar a atenção da imprensa.”

Segundo o secretário, o governo se baseia em informações como o horário em que ocorreram as mortes, os locais onde as pessoas estavam e as roupas que elas usavam para afirmar que os civis mortos eram envolvidos com o tráfico de drogas.

Comandante do Bope, o tenente-coronel Marcelo Corbage também defendeu a legalidade do trabalho da tropa. “Aqueles que falam que houve execuções são pessoas ou de má-fé ou que são ignorantes. Porque as imagens falam por si só. Nós nos confrontamos com narcoguerrilheiros que estavam muito preparados para a guerra. O número de fuzis, carregadores e munições apreendidos fala por si só”, disse, em entrevista à Band.