BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma disputa bilionária está em andamento no setor ferroviário, envolvendo duas das maiores companhias logísticas do país: a VLI, empresa de transporte controlada pela Vale e pela canadense Brookfield, e a Rumo, braço de infraestrutura do grupo Cosan.
Está em jogo o controle do transporte de grãos do país, a partir de uma nova ferrovia que está em construção entre Mato Grosso e Goiás e que vai se conectar a diferentes saídas portuárias.
A reportagem teve acesso a um documento elaborado pela VLI e enviado à cúpula do governo em 31 de julho. No documento, tratado pela empresa como sigiloso, a companhia despeja críticas ao edital do governo para a concessão do chamado Corredor Ferroviário Leste-Oeste, malha de cerca de 2,4 mil km de extensão que vai integrar a Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste), que liga Água Boa (MT) a Mara Rosa (GO), ao traçado da Fiol (Ferrovia de Integração Oeste-Leste), que cruza a Bahia até o porto de Ilhéus (BA).
O material da VLI, apresentado quatro meses depois das audiências públicas do edital, etapa realizada justamente para debater de forma transparente as regras do edital, afirma que, da forma como está, o texto favorece diretamente a maior rival, a Rumo.
Em suas “contribuições adicionais ao edital”, a VLI diz que o texto cria uma “clara vantagem artificial” para a Rumo e pode levar a licitação ao fracasso.
Segundo a VLI, a estrutura econômica e regulatória do edital “desestimula novos concorrentes” e mantém o domínio da Rumo sobre o escoamento de grãos do Centro-Oeste, jogando toda a carga da região no colo da rival.
O argumento central da VLI é que a Rumo já controla as principais ferrovias que conectam Goiás e Mato Grosso até a chegada ao porto de Santos, o que inclui a Malha Central (RMC) e a Malha Paulista (RMP). Por isso, mesmo que a Rumo não vença a licitação da nova ferrovia, diz a VLI, continuaria a comandar o acesso à rota de exportação mais usada do país, o porto de Santos (SP).
A malha da Rumo chega ao litoral paulista, mas não entra efetivamente no porto de Santos. Na baixada, ela se conecta a alguns quilômetros de trilhos controlados pela MRS, empresa que tem a Vale entre os sócios.
“A Fico estará pronta para operação antes da Fiol II e Fiol III, ou seja, antes que o sistema tenha saída para o mar por Ilhéus (BA) e seja autossuficiente para escoamento para exportação”, diz a VLI, ao afirmar que qualquer operador que assumir a nova ferrovia dependeria de trechos já controlados pela Rumo para chegar ao litoral.
“A concentração de mercado pode aumentar em até 10%, pois, de fato, a Fico restará completamente à mercê do Grupo Rumo, independente de quem seja o subconcessionário, uma vez que o Grupo Rumo já possui posição dominante via malha própria”, diz a rival.
Nos cálculos da VLI, a Rumo teria custos operacionais bem menores que qualquer novo concorrente, o que geraria um diferencial de até R$ 70 por tonelada transportada sobre os demais. Esse cenário, diz a empresa, abre espaço para que a rival use sua posição para “sufocar” a concorrência, por meio da prática artificial de “compressão de margens”.
O documento também diz que, em um cenário em que a VLI viesse a ganhar o leilão, seria mais vantajoso para a Rumo reduzir a tarifa cobrada em seus trechos do que utilizar a Fico e ter que pagar pelo direito de passagem à concorrente. A VLI faz uma análise sobre o interesse da Rumo em entrar na disputa.
“A estratégia de redução tarifária pela Rumo torna-se cada vez mais plausível e provável, especialmente porque a empresa não demonstra interesse em participar do certame da Fico na modelagem blocada”, afirma a VLI, referindo-se à oferta integrada aos trechos já em construção na Bahia.
Ao falar de “abuso de posição dominante”, a VLI diz que o grupo Rumo detém mais de 80% do mercado de transporte ferroviário de grãos no país e que teria condições de “capturar integralmente as cargas da Fico”, mesmo sem fazer aporte, capacitação e operação da infraestrutura.
“Em termos de efeitos sobre o mercado, a mera perspectiva de tal estratégia já é elemento suficiente a desencorajar a entrada de agentes bem informados”, diz a VLI, ao cobrar mudanças no texto.
Procurada pela reportagem, a VLI declarou que “acompanha com atenção as políticas públicas, os debates sobre a expansão da infraestrutura ferroviária brasileira e tem contribuído de forma construtiva e colaborativa com o poder público para o aperfeiçoamento de um sistema logístico”.
Sobre os apontamentos feitos no documento, a companhia declarou que “não acredita que o edital tenha sido elaborado com a intenção de privilegiar qualquer empresa”.
A Rumo declarou que “participou das fases de audiência e consulta pública da modelagem nos canais institucionais adequados, apresentando contribuições técnicas, como previsto pelas regras do processo licitatório, com base em dados objetivos e visando à melhoria do projeto”.
A empresa pontuou ainda que é “uma operadora logística, não proprietária da carga, que presta serviços a terceiros e atua em regime de livre acesso e concorrência”.
O Ministério dos Transportes afirmou que o edital está em estágio final de modelagem e que “é natural e salutar que empresas interessadas em participar da licitação apresentem suas visões a respeito do projeto”. A VLI, inclusive, participou de reuniões técnicas na pasta e, segundo o ministério, suas contribuições estão sendo consideradas.
O ministério refutou, porém, alegações de que o edital em elaboração possa reduzir a competição no setor. “O Ministério dos Transportes leva a sério a concorrência, a integridade e a transparência. A carteira de projetos atualmente em estruturação pela pasta revolucionará o cenário logístico nacional, o que gera incômodo natural aos incumbentes [como VLI e Rumo] desse setor historicamente oligopolizado”, declarou.
Segundo o ministério, o objetivo do leilão é “liberar os embarcadores das duas alternativas logísticas ferroviárias atualmente existentes no país, uma delas via Santos (SP), operada pela Rumo, e a outra via Itaqui (MA), operada preponderantemente pela própria VLI e pela Vale, empresa de seu grupo econômico”.
A estatal Infra S.A. informou que os estudos estão em fase de ajustes para serem submetidos ao Tribunal de Contas da União.




