WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Após dois anos de guerra em Gaza, um grupo cada vez maior de soldados de Israel tem apresentado sinais de trauma. Não é apenas uma exaustão física, dizem especialistas ouvidos pela reportagem, mas também um sofrimento moral.
Apesar de não haver estatísticas oficiais, a imprensa israelense chegou a relatar que dezenas de milhares de reservistas não responderam à convocação no início do ano. Recusam-se, com isso, a participar desse conflito, que já deixou quase 70 mil mortos e que algumas organizações internacionais descrevem como genocídio.
Um dos ex-militares que têm ido a público criticar o Exército é Tuly Flint, 58. Flint serviu em diversos períodos de confronto, incluindo as duas Intifadas palestinas, travadas de 1987 a 1993 e de 2000 a 2005. Especializou-se em medicina e fez doutorado em estudo de traumas. Chegou ao cargo de tenente-coronel e comandou um regimento.
Na guerra de Gaza de 2014, trabalhou como médico, atendendo a soldados. Com sintomas de estresse pós-traumático, passou a se recusar a usar armas e a vestir o uniforme -mas continuou na reserva. Tornou-se, no ínterim, um dos líderes dos Combatentes pela Paz, uma associação que reúne militares israelenses e palestinos.
Aceitou voltar ao serviço após o atentado de 2023, convencido de que precisava ajudar os soldados de seu país a se defenderem. Meses depois, porém, horrorizado com o que via, passou a criticar abertamente o Exército e foi dispensado. “Eu já tinha visto crimes de guerra em 2014, mas o que está acontecendo agora tem outra escala. É algo inédito.”
Flint diz que muitos soldados sofrem com o que chama de ferimento moral. Isso acontece quando uma pessoa é obrigada a fazer algo que contraria seus valores. É também o caso quando vê alguém cometer essas ações e não consegue impedir. É o que acontece em Gaza, afirma.
Sugere que, se não forem tratadas, essas feridas morais podem deixar sequelas na sociedade israelense. Como resultado dos conflitos recentes, afirma já notar um aumento da violência doméstica e também nas ruas. “As pessoas que eu trato têm pesadelos e dificuldades para se relacionar.”
Há também um imenso trauma em Gaza, é claro, sob bombardeio há mais de dois anos. Por isso, Flint criou um projeto para treinar terapeutas palestinos em Gaza e na Cisjordânia a atender às suas populações. “O que vivemos hoje é um trauma coletivo, que ainda está em andamento.”
“Tem sido bastante difícil para os soldados que têm algum tipo de sensibilidade liberal e humanitária reconciliar suas ordens com seus valores morais”, diz Joel Carmel, diretor de articulação pública do Breaking the Silence (rompendo o silêncio), uma organização local que publica os testemunhos anônimos de ex-militares sobre os abusos que cometeram.
“Os objetivos declarados da guerra eram trazer os reféns para casa e eliminar o Hamas”, diz. No atentado terrorista de 7 de outubro de 2023, o Hamas havia deixado 1.200 mortos em Israel, além de capturar 251 reféns. “Mas ficou claro para muitos soldados que eles não estavam lutando por aquilo. A guerra era, em grande parte, sobre vingança e sobre salvar o governo”, afirma.
Carmel se refere, com isso, à frágil coalizão que mantém o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu no poder. Netanyahu depende hoje de partidos da extrema direita religiosa, que insistem na continuidade do conflito em Gaza. Analistas sugerem, ainda, que o premiê prolonga a guerra para não ter de responder na Justiça por graves acusações de corrupção.
Os atentados de 7 de outubro afetaram todos em Israel, diz Carmel. Em um país tão pequeno, com menos de 10 milhões de habitantes, é comum conhecer alguém que tenha sido morto ou sequestrado. Mas o trauma também fez cair muitas máscaras, afirma. “Deu permissão para que israelenses expressassem medo, ódio e a desumanização dos palestinos de maneiras mais públicas, justificando as piores ações desta guerra.”
“É algo que vai nos acompanhar, como sociedade, por muito tempo”, diz. “Mas isso não quer dizer que nós somos as vítimas. Os palestinos foram as vítimas nos últimos anos. Só que também pagamos um preço.”
Procuradas pela reportagem, as Forças de Defesa de Israel afirmaram, por meio de uma nota, que seus valores incluem “o respeito à dignidade humana e à moral”. O Exército também disse que está ciente dos desafios psicológicos inerentes ao serviço militar e que oferece apoio à saúde mental de seus soldados. “Todo relato de sofrimento ou trauma é tratado de maneira séria e responsável.”




