SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No dia 2 de novembro, exatos 25 anos atrás, embarcava a bordo da Estação Espacial Internacional sua primeira expedição. Desde então, a ISS (como é conhecida por sua sigla em inglês) se manteve permanentemente ocupada -um quarto de século em que não se passou um dia sequer sem que humanos estivessem no espaço.

A data, naturalmente, é motivo para celebração, apesar de trazer consigo também um jeitão de fim de festa. Apresentada como o maior projeto coletivo da história da humanidade, ela foi construída por 15 países, com liderança da Nasa (agência espacial dos EUA) e da Roscosmos (sua contraparte russa), a um custo total estimado em uns US$ 100 bilhões (isso até o fim da fase de construção, em 2011, sem incluir operações, atualizações e manutenção posteriores).

Essa longa e intrincada história de mais de 9.000 dias foi fartamente documentada e agora pode ser consultada de forma simples e didática no site ISS in Real Time (issinrealtime.org), projeto multimídia independente lançado por dois engenheiros da Nasa.

Ben Feist e David Charney trabalham no Centro Espacial Johnson, no Texas, órgão da Nasa responsável pelos aspectos tripulados de seu programa espacial. Eles já haviam feito algo parecido em 2019 no site Apollo 11 in Real Time (apolloinrealtime.org), para celebrar os 50 anos da primeira caminhada humana na Lua, e o projeto depois foi expandido para incluir as missões Apollo 13 e Apollo 17. Mas a natureza do ISS in Real Time é bem diferente; não cobre períodos que não passam de duas semanas, mas sim uma única gigantesca missão que já dura 25 anos.

UM NOVO MUNDO

A ISS nasceu de um projeto americano puro-sangue lançado em 1984, a Estação Espacial Freedom, que, no entanto, jamais ganhou tração suficiente, apesar de ter atraído parceiros internacionais em seu desenvolvimento (Canadá, Japão e países europeus agregados na ESA, sua agência espacial continental). A proposta só decolou mesmo com o colapso da União Soviética, em 1991, e a conversão da Rússia de antagonista mortal a aliada amigável dos EUA.

O projeto da Freedom foi adaptado para se combinar a módulos russos, literalmente rachando a estação meio a meio e criando uma saudável codependência entre os dois lados. A nova ISS seria operada conjuntamente pelo Centro Espacial Johnson, em Houston, e pela Cidade das Estrelas, nos arredores de Moscou.

Os países antes agregados à Freedom seriam parceiros americanos com seus módulos próprios no novo complexo orbital, que começou a ser construído com o lançamento do módulo russo Zarya, em 20 de novembro de 1998. Duas semanas depois, o módulo Unity, que serviria de conexão entre os lados russo e americano da estação, seria levado ao espaço pelo ônibus espacial Endeavour.

O terceiro módulo, que até hoje serve como principal habitáculo para os astronautas, foi o Zvezda, lançado apenas em julho de 2000. Daí para frente a estação já poderia ser permanentemente habitada, e a Expedição 1, que embarcou no dia 2 de novembro de 2000, era formada por um americano (William Shepherd, o primeiro comandante da ISS) e dois russos (Iuri Gidzenko e Sergei Krikalev).

A construção da estação procedeu pelos anos seguintes, com os russos lançando seus módulos em foguetes convencionais, com acoplagem automática à ISS, e os americanos lançando os módulos seus e de seus parceiros a bordo dos ônibus espaciais. Houve vários percalços -o maior deles a interrupção dos voos americanos após o acidente com o ônibus espacial Columbia, em 2003. Missões foram interrompidas por quase três anos, período em que os americanos dependeram 100% das cápsulas russas Soyuz para o envio de tripulações ao complexo orbital.

Os ônibus espaciais retomaram suas missões em 2006 e prosseguiram com as etapas previstas na montagem da estação, o que terminaria em 2011. Concluída essa tarefa monumental, que terminou com a construção de um complexo do tamanho de um campo de futebol e dezenas de componentes diferentes construídos na Terra e integrados no espaço, as atividades se voltaram mais para a real função da ISS: permitir a realização de experimentos que ensinassem humanos a viver por longos períodos longe da Terra.

O Brasil chegou a integrar o programa entre 1997 e 2007, após a assinatura de um acordo bilateral com os EUA, a um custo de US$ 120 milhões, mas não cumpriu com as obrigações (que previam a construção de seis componentes menores) e acabou excluída do projeto quando a Nasa não pôde mais esperar a contribuição brasileira. Como parte do acordo, a agência americana treinou o astronauta brasileiro Marcos Pontes (hoje senador), que acabou voando em 2006 à estação graças a um contrato separado feito com os russos para uma missão de curta duração.

UM NOVO VELHO MUNDO

Ao chegar a seus 25 anos de ocupação contínua, a ISS vive uma situação paradoxal. Por um lado, está no auge de sua produtividade, constantemente tripulada por sete astronautas, que se alternam em estadias que vão de 4 a 8 meses. Por outro lado, a geopolítica de cooperação pós-Guerra Fria que a gestou está se esfacelando.

Embora entre astronautas e cosmonautas não haja atritos, e a colaboração entre EUA e Rússia prossiga na manutenção da estação, há uma certa animosidade no ar. A invasão russa da Ucrânia criou uma situação de mal-estar, e o casamento parece estar próximo do fim.

Conforme a estação vai chegando ao final de sua vida útil, os dois principais parceiros não sabem nem até quando querem levá-la. Os americanos já acordaram com europeus, japoneses e canadenses que o complexo orbital deve seguir em operação até 2030. Os russos tendem a acompanhar, mas por ora só garantem até 2028.

E o divórcio já se mostra quase inevitável quando contemplamos os próximos programas tripulados, que envolvem um retorno à Lua. Enquanto a Nasa segue com seus parceiros mais usuais no programa Artemis, que inclui uma estação orbital lunar construída nos mesmos moldes da ISS, o Gateway, os russos já decidiram se alinhar ao programa chinês para sua ida à Lua, no projeto da Estação Internacional de Pesquisa Lunar. Se parece uma nova corrida espacial, é porque é.

Também não ajuda o fato de a ISS enfrentar cada vez mais problemas em órbita, com vazamentos e desgaste de seus componentes. Embora ela seja atualizada com alguma frequência, algumas das peças simplesmente não podem ser substituídas, o que significa que, com ou sem harmonia entre os parceiros, o fim não deve estar muito além de 2030, no mais tardar.

O mundo mudou de lá para cá. Se os anos 1990, que pariram a ISS, pareciam uma era de otimismo, de pacificação, colaboração e globalização, os anos 2020 parecem o oposto disso: aumento das tensões, potencial para novos conflitos e recrudescimento do nacionalismo.

A ISS foi um projeto que flertou com “o fim da história”, como sugeria o cientista político Francis Fukuyama. Conforme a própria estação se aproxima de seu fim, vemos que estamos apenas virando mais uma página de um livro muito mais longo e cheio de reviravoltas -que certamente vai influenciar a forma como a humanidade passa a ocupar o espaço no século 21.