SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A sensação de abandono da população em relação ao Estado, favorecida nos contextos vulneráveis dos territórios em que ocorrem as operações policiais mais violentas do Rio de Janeiro, pode explicar o apoio de parte da sociedade às ações da última terça (28) nos complexos do Alemão e da Penha, quando foram mortas 121 pessoas, entre elas quatro policiais.
Segundo pesquisa do Datafolha, 57% dos moradores do Rio de Janeiro concordam com a avaliação do governador Cláudio Castro (PL) de que a Operação Contenção foi um “sucesso”. Outros 39% discordam total ou parcialmente desta avaliação.
Ao mesmo tempo, 77% da população carioca concorda que “investigar crimes e prender criminosos é mais importante do que matar bandido”.
Para sociólogos, cientistas políticos, economistas e especialistas em segurança pública, da favela, da PM ou do asfalto, ouvidos pela Folha, o apoio majoritário à operação mais letal da história do país pode ser relacionado à negligência histórica do Estado nesses territórios, em especial no campo da segurança pública, nos quais se faz presente pontualmente e em geral por meio de ações deste tipo.
“A sensação de impotência do morador sobre como lidar com o controle territorial por redes ilícitas tem a ver com uma perspectiva histórica de abandono das pessoas empobrecidas do Estado, que não está presente nesses bairros para exercer a soberania territorial como acontece em outras partes da cidade”, avalia a especialista em segurança pública, Eliana Sousa Silva, que cresceu no conjunto de favelas da Maré, no Rio, onde criou a ONG Redes da Maré.
“A miopia em relação à gravidade do que está acontecendo não ocorre porque as pessoas estão defendendo um projeto específico, mas porque elas querem resolver de forma rápida um problema que afeta a todos, mas que não tem resolução rápida.”
O fato de não ser uma prioridade política o enfrentamento real do problema do controle territorial cria uma sensação de frustração e de abandono da população, afirma Rodrigo dos Reis Soares, professor titular da Cátedra Fundação Lemann no Insper e autor de trabalhos sobre a perspectiva econômica do crime e da violência.
“A violência entre grupos e o abuso por parte daqueles que controlam certos territórios persistem inabalados. Nesse sentido, acredito que alguma demonstração de enfrentamento, por mais equivocada que possa ser, gera uma reação positiva na população”, pondera.
“Por isso não me surpreende esse apoio. Na minha opinião, isso indica quão dramático é o problema, em particular do ponto de vista da população afetada, mas também de forma mais geral aos olhos da população brasileira.”
Para Sérgio Adorno, professor titular em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, os resultados da pesquisa refletem “o calor dos acontecimentos” e não necessariamente uma reflexão mais detida sobre o assunto.
“O que é novo é uma reivindicação explícita de uma nova legitimidade da violência quando antes ela era desqualificada enquanto instrumento de poder e de garantia da ordem”, avalia ele, que é coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “É como se a violência fosse um destino trágico que precisa acontecer para que outras pessoas possam viver. Tem uma demanda por ordem, mas não por um Estado de Direito.”
Adorno aponta para o que julga ser um paradoxo. “Há uma população encurralada entre a polícia e o crime organizado, que também é autoritário e arbitrário. Elas querem ser libertadas e, se não há outra saída que não seja o poder armado, que seja o da polícia que venha para defendê-las.”
Adilson Paes de Souza, coronel da reserva da PM paulista e doutor em psicologia social, concorda com a avaliação. “A população se sente abandonada e está topando qualquer medida para trazer sossego, ainda que momentâneo”, avalia. “Por isso, de tempos em tempos, são feitas essas operações para dizer que o Estado existe, que mantém a soberania em determinados territórios, porque sabe-se que a população está desesperada e certos políticos dependem desse desespero para se eleger.”
Quando esse abandono do Estado gera uma descrença nas instituições civis e também na ideia de Estado Democrático de Direito, ele tende a aumentar a confiança nas polícias, segundo estudo realizado no âmbito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“O alto apoio à operação decorre da combinação de medo social e descrença nas instituições civis, o que leva parte da população a aceitar ações violentas como se fossem necessárias. A confiança na polícia torna-se emocional e instrumental, voltada à promessa de segurança imediata, e não de legalidade”, explica o advogado e cientista político Diego Cortezzi, coautor do estudo, que investigou como a atitude política, de maior ou menor apoio a diferentes dimensões da democracia, afeta a confiança na polícia.
Realizado a partir de dados de vários países da América Latina, inclusive do Brasil, o estudo demonstrou que, em contextos de violência crônica e de medo, cidadãos tendem a apoiar soluções coercitivas e a confiar em forças repressivas mesmo sabendo que elas são ineficientes.
Para o sociólogo Claudio Beato, coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da UFMG, pesa também neste dado o fato deste tipo de discurso de apoio à violência ter sido prevalente nos quatro anos de governo de Jair Bolsonaro, o que daria tração a essa ideia. “Venderam a ideia de que matar centenas de pessoas seria um projeto. Não é.”
Ele cita uma pesquisa feita em Belo Horizonte com pessoas que moravam em favelas. “A maior queixa delas era a polícia ser truculenta e não distinguir trabalhadores de criminosos. Mas, quando se perguntava o que as pessoas mais queriam, a resposta era: polícia.”
Soares afirma que alguma solução definitiva para o problema do controle territorial e da ausência do Estado se dará quando “as forças de segurança pública entrarem e ficarem em definitivo nesses territórios afetados”.
“A ideia que essa solução será alcançada através de operações que tratam os territórios afetados quase como áreas externas ao território nacional, onde forças de segurança pública entram e saem, é inteiramente equivocada”, conclui.







