BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Entre as sete guerras que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirma ter acabado está uma que nunca se tornou um conflito de fato, mas que pode redesenhar o mapa do poder no nordeste da África. Trata-se da disputa entre Etiópia e Egito em torno da construção de uma hidrelétrica no Nilo Azul, afluente do Nilo que contribui com cerca de 80% da água do rio no período de chuvas.

A Grande Represa do Renascimento Etíope (Gerd, na sigla em inglês) foi inaugurada no dia 9 de setembro, após 14 anos de um projeto que motivou desde seu início declarações acaloradas dos dois lados –e até de Trump, que durante seu primeiro mandato afirmou que o Egito iria “acabar explodindo” a represa.

Apesar dos exageros característicos do americano, a declaração não erra ao refletir o tamanho da importância do projeto para Addis Abeba e, por outro lado, os receios do Cairo, em uma região vital para os mercados globais com a proximidade do mar Vermelho e do Canal de Suez.

São 5,15 gigawatts de capacidade instalada e 13 unidades geradoras de energia para alimentar um país que tem cerca de 40% de sua população sem acesso estável à energia. É também a maior usina hidrelétrica da África em capacidade instalada, com uma área alagada de 1.880 km² (maior que a de Itaipu, com 1.350 km²). A Etiópia já negocia a venda de excedentes com vizinhos, como o Quênia, e busca parcerias para desenvolver projetos agrícolas e industriais.

A Gerd custou cerca de US$ 5 bilhões (R$ 27,2 bilhões), e números oficiais falam em 25 mil trabalhadores ao longo dos anos, 95% deles etíopes. O projeto gerou uma onda de orgulho nacional em um país sob constante desafio de guerras civis e ameaças separatistas, uma das quais resultou na independência da Eritreia, em 1993 e, assim, no fim do acesso vital ao mar Vermelho.

Para o embaixador da Etiópia no Brasil, Leulseged Tadese Abebe, a usina é uma “missão geracional”, cuja ideia geral nasceu ainda durante o reinado do imperador Haile Selassie, encerrado por um golpe na década de 1970.

“É uma boa notícia para toda a África, porque mostra que, quando há liderança efetiva e mobilização da população, é possível realizar grandes coisas sem financiamento externo”, afirma o embaixador, em referência ao fato de que a usina foi bancada basicamente por recursos estatais, doações e títulos públicos comprados por etíopes de várias classes sociais no país e na diáspora –Addis Abeba acusa Cairo de influenciar organizações internacionais para bloquear acesso a financiamento externo.

A disputa começa no fato de que mais de 90% da água utilizada pelo Egito vem do Nilo, o que deixa o país árabe particularmente suscetível a mudanças no fluxo do rio.

“O Egito considera a represa uma ameaça de proporções potencialmente existenciais que invade o meio de subsistência de mais de 100 milhões de egípcios e pode colocar em perigo a segurança e a própria sobrevivência de uma nação inteira”, afirma a embaixadora do Egito no Brasil, Mai Khalil.

Bastou menos de um mês desde a inauguração da represa para que um exemplo prático da disputa viesse à tona. O Cairo acusou Addis Abeba de provocar as enchentes que atingiram o país árabe no início de outubro –segundo o Egito, resultado de operação “unilateral e imprudente” da usina; a Etiópia rejeita a acusação e chama a fala de maliciosa.

O país árabe diz reconhecer a importância da usina para Addis Abeba, que defende se tratar de uma obra com intuito estritamente ligado ao desenvolvimento do país.

O megaprojeto, no entanto, coloca o dedo em algumas feridas que dão outra dimensão para a disputa.

Para o Cairo, o Nilo não é apenas fonte de recursos hídricos: o preâmbulo da Constituição do país atesta que “o Egito é a dádiva do Nilo para o egípcios, e a dádiva dos egípcios para a humanidade”, frase atribuída ao historiador grego Heródoto, que viveu no século 5 a.C.. Há um artigo da Carta dedicado ao rio, em que o Estado se compromete a proteger o Nilo e a garantir os “direitos históricos” do Egito a ele.

É, portanto, uma percepção intimamente ligada à ideia de nação egípcia, que a represa coloca em dúvida ao tomar, na prática, controle do fluxo do principal afluente do rio, que também é motivo de orgulho nacional para os etíopes.

As duas nações são, ainda, resultado de antigas civilizações, orgulhosas de suas histórias únicas e com particularidades, como suas grandes populações e territórios, que fazem delas protagonistas ao lado de África do Sul e Nigéria na disputa pela liderança africana.

Há um histórico de tratados de uso das águas do Nilo que remonta ao início do século 20, passa pelo período colonial, em que Egito e Sudão, este hoje imerso em grave guerra civil, eram territórios controlados pelo Reino Unido, e deságua nos debates atuais.

A usina foi anunciada pelo então premiê etíope Meles Zenawi em março de 2011, início de uma década em que a Etiópia viu seu PIB anual crescer 9,1% em média, segundo dados do Banco Mundial. No mês anterior, o então líder egípcio Hosni Mubarak, à frente do país desde a década de 1980, foi derrubado após a Primavera Árabe, o que evidencia o momento oposto vivido então pelo Egito.

“Houve uma oportunidade estratégica que foi tomada pela Etiópia, com esse grande crescimento econômico e visões estratégicas, e que levou a um reequilíbrio de forças na região”, afirma Gustavo de Carvalho, pesquisador do Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais (SAIIA).

Desde então, uma série de encontros bilaterais e trilaterais, envolvendo o Sudão, tentaram estabelecer bases para um acordo sobre a construção da usina, o que nunca aconteceu. Em 2015, um primeiro pacto foi assinado, criando princípios de cooperação e de diretrizes para as operações, incluindo o preenchimento do reservatório, além de um painel internacional de especialistas e um comitê técnico para estudos hidrológicos.

As negociações, no entanto, se arrastaram, enquanto a Etiópia seguia com a construção. O Cairo acusa Addis Abeba de atropelar o direito internacional e o acordo de 2015 ao finalizar a usina, encher a represa e seguir com suas operações de forma unilateral.

O país árabe recorreu ao Banco Mundial, à União Africana e ao Conselho de Segurança da ONU desde então, sem sucesso. Os etíopes acusam os egípcios de terem tentado impedir a construção como um todo em meio às negociações.