SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Tudo começou com um encontro, 20 anos atrás, de dois jovens que estavam, cada um por um motivo, no Festival de Cannes, na França. Era 2005, e o ator baiano Wagner Moura acompanhava a primeira exibição de “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado, em que atua ao lado do conterrâneo e parceiro desde o começo da carreira, Lázaro Ramos, e da atriz Alice Braga. Era um filme pequeno, independente, sobre amigos meio trambiqueiros que se apaixonam pela mesma mulher, uma dançarina de boate. E que saiu premiado na mostra paralela Um Certo Olhar.

O pernambucano Kleber Mendonça Filho, crítico de cinema e aspirante a cineasta, com alguns curtas-metragens já feitos, cobria o festival e foi apresentado ao ator. “Era muito raro ter um jornalista nordestino cobrindo o Festival de Cannes, e isso me deixou impressionado logo de cara”, diz Wagner Moura.

“Wagner tem um carisma notável, né?”, afirma o diretor. “Eu já sabia que ele era bom ator, já tinha visto bons trabalhos feitos por ele, mas sabe quando você encontra uma pessoa e tem a sensação de que aquele é um cara que vai fazer muita coisa boa?”, diz.

“Leva muito tempo para você ter uma visão completa da obra de um artista, mas às vezes a sensação é imediata e você diz ‘parece que esse cara é bom’”, lembra o cineasta. “Não é sempre que isso se confirma, mas no caso do Wagner foi assim. Depois eu o entrevistei, ainda como crítico, no lançamento de ‘Tropa de Elite’, em 2007, um filme muito bem executado, mas de que eu não gosto, acho que tem um ponto de vista complicado para um assunto muito complexo.”

No ano seguinte, Mendonça Filho lançou seu primeiro longa, o documentário “Crítico”, resultado de uma década de entrevistas feitas por ele, enquanto crítico de cinema, com cineastas como Walter Salles, Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Fernando Meirelles, Cláudio Assis e nomes internacionais como Gus Van Sant e Todd Haynes.

O filme disseca a relação entre quem faz cinema e quem analisa os filmes e a tensão constante entre as duas partes. Há o amor pelo cinema que os une, mas também a frustração por uma das partes não se sentir compreendida pela outra. Tudo isso em meio à chegada da internet e dos blogs de cinema, que mudou a maneira como a crítica circulava.

Desde então, o cinema de Mendonça Filho se transformou em quase um gênero em si, mesmo com uma obra enxuta. Foram apenas quatro longas-metragens antes deste, mas todos muito bem-sucedidos entre o público, a crítica e as premiações. O primeiro longa de ficção, “O Som ao Redor”, foi lançado em 2012. Depois veio “Aquarius”, em 2016, “Bacurau”, em 2019, e o documentário “Retratos Fantasmas”, em 2023.

Moura, por sua vez, fez desde papel de galã em novela da Globo até seu primeiro longa como diretor em 2019, “Marighella”. Virou o maior astro do cinema nacional e, depois de estrelar “Narcos”, da Netflix, de 2015 a 2017, um nome em ascensão no mercado mundial. Já foi até protagonista de filme hollywoodiano, “Guerra Civil”, no ano passado.

Em algum momento entre “Bacurau” e “Retratos Fantasmas”, Kleber Mendonça Filho decidiu “fazer um thriller dos anos 1970 com Wagner Moura, que tivesse uma textura histórica muito forte e verdadeira”. “Não só baseado nas minhas lembranças, mas numa compreensão maior da vida neste país”, ele diz.

O diretor conversou com o ator, que disse sim antes mesmo de ler um resumo do que viria a ser o roteiro, e então passou os próximos dois anos dedicado a criar essa trama. “Acho que nasci para fazer filme do Kleber”, diz Moura.

“Também nem li o roteiro, estava gravando novela, não tinha tempo, mas conversei com a Emilie [Lesclaux, produtora de todos os filmes de seu marido, Kleber], entendi minha parte da história e só fui ver o resultado final no lançamento, em Cannes. Foi lá que entendi a grandeza desse filme”, afirma a atriz Alice Carvalho, que também se consultou com seu grande amigo e conselheiro Gabriel Leone, outro ator coadjuvante de “O Agente Secreto”.

“Eu tinha muita vontade de trabalhar com Kleber, assisti a todos os filmes dele, desde os primeiros curtas-metragens. Mas, quando recebi o roteiro, foi uma revelação. Não era um roteiro tradicional. Era uma obra completa”, diz Leone. “Havia aquelas fotos todas que abrem o filme, a trilha sonora já estava escolhida, muitos desenhos do próprio Kleber, mostrando onde ele ia colocar a câmera em determinada cena, para a gente ler e entender exatamente a história que ele planejava contar.”

O roteiro de “O Agente Secreto”, aliás, será lançado como livro junto com o filme nos cinemas, com prefácio do diretor e posfácio do protagonista, além de fotos de bastidores e storyboards, pela Amarcord, da editora Record. Mas foi como melhor diretor que Mendonça Filho saiu vencedor do Festival de Cannes neste ano, duas décadas após ter conhecido no mesmo evento o seu protagonista, também premiado como melhor ator.

O dia da pré-estreia do filme em São Paulo, na última terça-feira, foi o mesmo da operação policial que deixou mais de uma centena de mortos no Rio de Janeiro e já é a mais letal da história do país. Uma chuva impedia Moura de aterrissar na capital paulista, e o piloto da ponte aérea achou arriscado retornar ao aeroporto Santos Dumont, de onde vinha o ator. “Aqui está esse temporal e lá no Rio está chovendo tiro”, disse o ator, quando finalmente conseguiu chegar, com mais de uma hora de atraso.

No mesmo dia, “O Agente Secreto” recebeu duas indicações importantes —a de roteiro original, para Mendonça Filho, e de ator, para Moura, no Gotham Awards, festival dedicado ao cinema independente. O prêmio será entregue em dezembro, em Nova York.

“A gente vai se beneficiar de sair na esteira de ‘Ainda Estou Aqui’, um filme que mobilizou o Brasil inteiro, que reconectou o público com o cinema brasileiro e que também falava sobre ditadura”, diz Moura. “Mas tem também a história de ser um filme de Kleber, e seus filmes sempre vão bem de bilheteria e ainda desmentem a dicotomia de que para fazer coisa boa tem que seguir certos padrões. Ele faz o filme do jeito que ele quer, e o público vai ver.”

A trama de “O Agente Secreto” se passa em 1977. Começa e termina com o uso de uma mesma palavra —pirraça. Na abertura, aparece escrita na tela, ilustrando o ano de 1977, que, segundo o cineasta, foi cheio dessa atitude.

“Gosto de ver a palavra pirraça na tela do cinema”, diz o cineasta. “É um grande som da nossa língua portuguesa. E existe um fator de época, se você olhar para a palavra escrita. Não sei por que, mas lembra outra palavra que caiu em desuso —salafrário. Ninguém mais usa. E, claro, aí fecha com o significado, que é uma provocação, uma maldade.”

Também houve pirraça nos bastidores. Até no roteiro. Logo que o personagem de Moura volta ao Recife, sua cidade natal e onde se passa a trama, começa a trabalhar no serviço público de identificação, com nome falso, e seu superior direto pergunta se ele é pernambucano. O personagem responde que sim, e o colega comenta —”mas esse seu sotaque não é muito católico”. A frase estava no roteiro original, não foi uma brincadeira do ator com o sotaque originalmente baiano de Moura.

“Fiquei louco da vida quando li isso. Achei uma descaração. Isso aí é a definição de pirraça”, diz Moura. “Aí sabe o que ele fez? Gravamos o filme inteiro, ninguém falou nada mais sobre isso e, na última cena, assim que eu digo ‘ação’, ele faz o diálogo inteiro com um sotaque pernambucano perfeito. Eu me emocionei. Chorei na gravação. Foi a pirracinha dele”, conta o diretor.

Uma bem mais explícita —e acessível ao público— é a presença de Perna Cabeluda, uma personagem coadjuvante que, a certa altura do filme, ganha vida e sai pela cidade, à noite, saltitando e chutando a cara das pessoas que fazem coisas que ela não aprova, como uma orgia gay num parque público. Não há explicação. A Perna Cabeluda é uma figura da mitologia moderna pernambucana, misto de terror e galhofa, assim como a Loira do Banheiro ou o Homem do Saco. Mas essa tem autoria.

Foi uma criação do jornalista e escritor Raimundo Carrero, ex-colunista do jornal Diário de Pernambuco na década de 1970. Como o Brasil sofria com a censura imposta pelos militares, muitas notícias eram cortadas das páginas e precisavam ser substituídas às pressas por casos absurdos inventados por quem estivesse disponível na redação.

Um dos contos criados por causa da censura dos militares foi o de Raimundo Carrero, que se inspirou numa piada de um colega que dizia estar tão ausente de casa que tinha visto uma perna cabeluda embaixo da cama que dividia com a mulher. O membro que saltitava pelo Recife caiu no gosto popular na época, principalmente depois do radialista Jota Ferreira, que também reivindicava autoria da história, dizer no ar que um homem havia sido internado depois de ter levado uma surra da tal perna.

Anos depois, a lenda ganhou a letra de “Banditismo por uma Questão de Classe”, de Chico Science e Nação Zumbi, que resgatou a história para a geração manguebeat e inspirou um documentário em curta-metragem de Marcelo Gomes, de “Cinema, Aspirinas e Urubus”.

Mas chega de spoilers. Vamos aos fatos. A menos de dois meses para o anúncio da lista com os 15 longas semifinalistas para as cinco vagas na categoria de filme internacional do Oscar, “O Agente Secreto” está bem posicionado na corrida e a sua ausência seria considerada uma verdadeira zebra.

Depois de prêmios em Cannes, “O Agente Secreto” já é um dos favoritos pelas cinco indicações finais que serão anunciadas em 22 de janeiro pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Em termos de premiações, o longa chega a novembro com ainda mais peso do que “Ainda Estou Aqui”, que havia vencido apenas o troféu de melhor roteiro no Festival de Veneza do ano passado.

“O Agente Secreto” também foi escolhido melhor filme pela Fipresci, a Federação Internacional de Críticos de Cinema. Além de prêmios, o filme já conta com aliados importantes, como as publicações Variety, The Hollywood Reporter, Deadline, Los Angeles Times e Gold Derby, cinco dos principais veículos de imprensa de língua inglesa que cobrem —e influenciam— o Oscar. Todos apostam no brasileiro entre os finalistas para a premiação da Academia.

Wagner Moura também está bem cotado para uma indicação ao Oscar de melhor ator, num ano em que as atuações masculinas estão chamando mais a atenção do que as femininas, com Leonardo DiCaprio, Daniel Day Lewis, Timothée Chalamet e Jeremy Allen White com indicações quase garantidas, de acordo com os sites de apostas. O brasileiro está em quatro das cinco listas —apenas os analistas do Los Angeles Times acham que George Clooney pode tomar o seu lugar por “Jay Kelly”, da Netflix.

Apesar da indicação de “O Agente Secreto” parecer bastante possível, o Brasil não aparece como favorito neste momento para levar o Oscar para casa. Mas “Ainda Estou Aqui” também não era aposta certa no início de novembro do ano passado. As principais publicações apostam em um duelo entre o norueguês “Valor Sentimental”, de Joachim Trier, e “Foi Apenas um Acidente”, drama do cineasta iraniano Jafar Panahi, que representa a França.

Os dois longas também estão entre as escolhas dos analistas para uma indicação à categoria de melhor filme. Mas isso não significa que “O Agente Secreto” não tenha chances. A corrida do Oscar é como uma montanha-russa com um carrinho que se move rápido e faz curvas fechadas com o passar do tempo. No ano passado, muitos davam como certa a vitória de “Emilia Pérez” na categoria de filme internacional, mas tropeços pretéritos da atriz Karla Sofía Gascón, além de uma campanha bélica e desastrosa, pôs tudo a perder.

Outros filmes que ganharam tração recentemente são a comédia “No Other Choice”, de Park Chan-wook, o apocalíptico espanhol “Sirāt” e “A Voz de Hind Rajab”, drama da Tunísia ambientado em Gaza que só achou distribuidor americano na semana passada, mesmo com o prêmio do júri em Veneza e apoio de nomes como Brad Pitt.

As indicações ao Gotham Awards, primeiro prêmio da temporada, não ajudaram a desvendar o potencial de “O Agente Secreto” no Oscar. Apesar de o filme ter sido indicado nas categorias de roteiro e atuação pelo instituto formado por curadores, críticos e jornalistas, o longa foi esquecido na categoria de filme internacional, que indicou “Foi Apenas um Acidente”, “No Other Choice” e o alemão “O Som da Queda”.

A premiação não tem nenhuma intersecção com o corpo de votantes do Oscar e normalmente privilegia longas alternativos —”Ainda Estou Aqui” e Fernanda Torres, por exemplo, nem concorreram na última edição. O delicado “Tudo que Imaginamos como Luz”, que venceu o Gotham mais recente de longa estrangeiro, não foi nem mesmo escolhido para representar a Índia no Oscar e nenhum dos indicados chegou à noite mais famosa do cinema mundial.

O cenário ficará mais nítido a partir do início de dezembro, quando saem os indicados ao Critics Choice Awards e, principalmente, ao Globo de Ouro. Apesar de nenhuma das duas organizações terem eleitores do Oscar, elas abrem caminho para uma exposição maior dos anunciados em um período crítico da campanha ao grande prêmio. Foi o que aconteceu, no ano passado, com Fernanda Torres, que venceu o Globo de Ouro de melhor atriz.

O Globo de Ouro tem 38 jornalistas e críticos brasileiros entre os seus jurados. É um dos grupos de votação mais numerosos da premiação, ganhando de Argentina, com 30, México, com 22, Japão, com 15, e França, com 15. A premiação foi comprada e reformulada pelo bilionário Todd Boehly, no ano retrasado, depois dos escândalos que atingiram a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. Boehly é dono de times de basquete, beisebol e futebol, além de ser investidor da Penske Media, casa da Variety, do Hollywood Reporter e do Gold Derby. Ele tem ainda parte do estúdio A24. A empresa está com o olhar atento sobre o Brasil e até anunciou um evento no Rio de Janeiro, previsto para março, como forma de expandir a marca na América Latina.

Fora da órbita de “O Agente Secreto”, outros brasileiros têm grandes chances de serem indicados aos maiores prêmios do cinema nos Estados Unidos. O montador Affonso Gonçalves, de “Ainda Estou Aqui”, é um dos favoritos por seu trabalho em “Hamnet”, de Chloé Zhao, e o diretor de fotografia Adolpho Veloso está na lista de vários analistas como indicado por “Train Dreams”, drama da Netflix protagonizado por Joel Edgerton. Até o documentário “Apocalipse nos Trópicos”, de Petra Costa, ainda pode render uma nova indicação à cineasta, de “Democracia em Vertigem”. Deus há de ser brasileiro, apesar do Brasil.

O AGENTE SECRETO

– Quando Estreia nesta quinta-feira (6) nos cinemas

– Classificação 16 anos

– Elenco Wagner Moura, Alice Carvalho e Gabriel Leone

– Produção Brasil, França, Holanda, Alemanha, 2025

– Direção Kleber Mendonça Filho