SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Viver em meio à violência, com operações policiais de alto risco e criminosos armados circulando pelas ruas, transforma a rotina das famílias e obriga a criação de estratégias para atravessar momentos de tensão no Rio de Janeiro —especialmente para quem tem criança em casa.

Abafadores de som (uma espécie de fone que reduz o barulho dos tiros) e mochilas previamente preparadas, com biscoito, brinquedo e garrafa de água, se tornaram ferramentas de sobrevivência.

“Não é o que queremos, mas criamos dinâmicas para ajudar as crianças”, diz a fisioterapeuta e psicóloga Mônica Cirne, que mantém uma clínica gratuita para moradores do oomplexo do Alemão e da Penha, aberta duas vezes por semana. Foi essa a região alvo da operação de terça (28), a mais letal já registrada no Brasil.

No dia da ação policial, Mônica saiu do consultório em meio ao tiroteio e correu para casa, onde realizou atendimentos por vídeo com mães e filhos escondidos debaixo de camas. Algumas crianças atípicas passaram mal e chegaram a convulsionar.

“Você não sabe como me doeu ouvir pelo vídeo, ‘tia Mônica, me ajuda, me tira daqui'”, relata. Durante os confrontos, ela orientava os pais a posicionar melhor os filhos e conversava com as crianças para reduzir o impacto do trauma.

A demanda por atendimento cresce junto com os casos de violência. Por isso, Mônica diz que precisará expandir os atendimentos, dependentes de doações. Ela criou uma campanha que já arrecadou 60 abafadores.

No mesmo cenário, Rafaela França criou a organização Neem (Núcleo de Estimulação Estrela de Maria), que acolhe crianças atípicas e suas famílias no complexo do Alemão.

É comum que crianças desenvolvam transtornos de ansiedade, rendimento escolar prejudicado e regressem em comportamentos como urinar na cama, diz ela. As atípicas podem ainda ter piora nas crises e tentar se esconder ou se machucar. “Estamos praticamente uma semana sem aula [na favela]”, afirma.

Para amenizar os impactos do barulho, França distribuiu mais de 600 abafadores em favelas do Rio e pretende entregar mais 300. “Não é só para crianças com autismo. Eles também ajudam as crianças típicas a se protegerem do impacto das operações”, explica.

Ela aponta que muitas crianças testemunharam quando os corpos dos mortos foram levados até uma praça na comunidade. Uma reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que, no dia em que mais de 70 corpos foram encontrados na mata, uma criança de nove anos ajudou na retirada.

“Bandidos passam de fuzil na nossa porta. Por mais projetos sociais, faltam atividades, falta educação de verdade. Muitos terminam o segundo grau sem rumo. É difícil criar filho menino na favela”, afirma França. “Não posso acreditar que o Rio não tem mais jeito. Tenho esperança através das crianças, mesmo sofridas.”

Para a psicóloga Edwiges Parra, situações como essas geram traumas e transtornos psicoemocionais. Ela destaca que crianças desenvolvem estratégias de adaptação, como mapear rotas seguras e usar abafadores para lidar com barulhos intensos.

“É muito curioso como as crianças aprendem a mapear rotas, horários, evitar janelas”, diz ela. A retomada da rotina escolar, o suporte social e o acolhimento emocional são essenciais para reduzir impactos e prevenir o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

Dados do Instituto Fogo Cruzado apontam 14 crianças atingidas por tiros no Rio desde o início do ano. Foram registrados 637 tiroteios no entorno de escolas na região metropolitana em 2025, afetando 984 instituições. No ano passado, foram 772 tiroteios e 1.110 escolas impactadas.

Na Maré, a ONG Redes da Maré calcula que crianças ficaram até 37 dias sem aula em 2024; em 2025, nove dias já foram contabilizados. “Uma criança que cursa todo o ensino fundamental em favelas pode perder quase um ano letivo por causa da violência”, diz Eliana Souza Silva, diretora da ONG.

A organização promove o projeto Cartas da Maré, no qual as crianças relatam como é a vida em favelas com alta violência. A edição deste ano visou sensibilizar o STF sobre a ADPF das Favelas.

Em uma delas, uma criança escreve “eu queria que a guerra e a matança acabassem”. Em outro, a fachada de uma escola é desenhada com a frase “eu devia estar na escola”.

“Essas cartas têm um sentido político e buscam sensibilizar o país sobre qual infância conseguimos garantir. Elas vivem isso diariamente”, afirma Eliana.

Rodrigo Flaire, da ONG Visão Mundial, destaca que a violência armada no Rio tem impacto profundo e duradouro sobre as crianças. “Elas não são apenas espectadoras, mas vítimas diretas e indiretas. A fatalidade compromete toda a rede de apoio, afetando frequência escolar, vacinação e saúde mental.”

A organização iniciou conversas com parlamentares e parceiros locais para criar espaços de acolhimento que promovam segurança e acompanhamento psicossocial. Flaire defende que protocolos aplicados em outros países, como Chile e Guatemala, resultam em melhora significativa na rotina escolar e na saúde mental.

A necessidade de protocolos chegou ao Senado. A senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que preside a Comissão dos Direitos Humanos, afirmou que foi protocolado ofício ao governador Cláudio Castro (PL).

Ela explicou que existem protocolos para calamidades, mas que falta um específico para violência armada: “Atendimento psicológico é um aspecto. Abrigos prontos, aulas e escolas preparadas, órfãos atendidos, identificar quem usou crianças como escudo e penas agravadas”.