SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aos sete anos, Gael pede colo ao pai sempre que sente saudade da mãe, Almiza, morta aos 37 anos por Covid-19 em junho de 2020. Sua irmã caçula, Valentina, hoje com cinco, nasceu um mês antes da morte da mãe e a chama com frequência.
“Ela chora e diz: Papai, quero minha mamãe. Os meus cinco filhos ainda sentem muito a falta dela. Tentei terapia para o mais velho [hoje com 16 anos], mas não consegui. Falta apoio emocional por parte do Estado. A gente só pode contar com a gente mesmo”, diz o enfermeiro Gracione da Silva Santos, 44.
A história da família exemplifica um estudo publicado na revista científica The Lancet Regional Health Americas, com a estimativa de que 1,3 milhão de crianças e adolescentes entre 0 e 17 anos perderam pai, mãe ou outro cuidador que vivia com elas no auge da pandemia de Covid, entre 2020 e 2021.
Desse total, 673 mil ficaram órfãos de um ou ambos os pais, e 149 mil dessas perdas foram associadas diretamente à Covid. Outras 635 mil sofreram a perda de um avô ou parente que morava na mesma casa pessoas que, em muitos casos, eram a base do sustento e do cuidado cotidiano. Entre essas, 135 mil perdas são ligadas à Covid.
“Perder um pai, uma mãe ou um cuidador na infância é uma experiência que deixa marcas profundas e duradouras. No Brasil, essas crianças seguem invisíveis aos olhos do Estado”, afirma Lorena Barberia, professora da USP e coautora do estudo. Para ela, compreender o tamanho dessa tragédia é o primeiro passo para que o país assuma a responsabilidade de cuidar dos que ficaram.
A pesquisa mostra que o impacto da orfandade não foi homogêneo. Roraima, estado onde vive Gracione Santos, teve a maior taxa de orfandade parental por todas as causas 17,5 crianças órfãs a cada mil, enquanto Santa Catarina registrou a menor (9,5 por mil).
Considerando apenas as mortes por Covid, Mato Grosso lidera (4,4 por mil), e o Pará aparece com a menor taxa (1,4 por mil). Para os autores, as diferenças refletem o peso das desigualdades: onde o acesso à saúde é precário e a pobreza é maior, as perdas também são mais intensas.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) classifica a orfandade como uma experiência adversa na infância, um tipo de trauma que aumenta os riscos de depressão, suicídio, transtornos mentais e exclusão social ao longo da vida.
“Essas perdas não se encerram no luto. Elas afetam a trajetória escolar, o bem-estar emocional e a estabilidade financeira dessas famílias. São feridas que se acumulam no tempo”, diz Barberia.
A psicóloga Samantha Mucci, professora da Unifesp e coordenadora do Proalu, programa de acolhimento ao luto infantil, explica que, quando uma criança perde um ou ambos os cuidadores principais, seu mundo interno se desorganiza. “Ela perde não apenas a figura de apego, mas também a referência de segurança, identidade e pertencimento.”
Segundo Mucci, quando o luto não é cuidado, podem surgir ansiedade, depressão, sentimentos de culpa, dificuldades escolares, agressividade, isolamento e comportamentos regressivos como urinar na cama, medo de ficar sozinha ou fala infantilizada. Em casos mais graves, há risco de luto prolongado e ideação suicida.
“O acompanhamento psicológico e a construção de uma rede de apoio são fundamentais, assim como a manutenção da rotina e de espaços de escuta e reconstrução de vínculos”, diz.
O Brasil é o único país do mundo que inclui nas certidões de óbito um campo onde é possível saber, por meio do CPF, se a pessoa morta tinha dependentes menores de idade. Essa informação, se integrada a políticas públicas, permitiria identificar rapidamente crianças órfãs e vinculá-las a programas de apoio. “Temos uma ferramenta valiosa, mas o Estado ainda não a transformou em ação”, diz Barberia.
No estudo, liderado por pesquisadores brasileiros e internacionais, foram analisados dados do SIM (Sistema de Informação de Mortalidade), censos, pesquisas domiciliares e estimativas de mortalidade excedente para calcular a orfandade por todas as causas.
Os pesquisadores compararam suas estimativas com dados de uma iniciativa pioneira em Campinas (SP), conduzida pela promotora Andrea Santos Souza, também coautora do trabalho. Ela revisou manualmente certidões de óbito para localizar órfãos da Covid e conectá-los a benefícios sociais.
O cruzamento mostrou que as fontes oficiais subestimam o número real de órfãos. “Mesmo quando o dado existe, falta integração e vontade política para agir”, observa Barberia.
Para ela, cada órfão representa uma vida que mudou para sempre. “O mínimo que podemos fazer é reconhecer, cuidar e garantir que essas crianças tenham oportunidades reais de reconstruir suas histórias.”
A pandemia atuou como um espelho das desigualdades. Nos estados mais pobres, onde a mortalidade adulta foi mais alta e as redes de apoio são frágeis, o impacto sobre as crianças foi muito maior.
“A geografia da orfandade é a mesma da desigualdade. Cada ponto do mapa revela como a pobreza e a falta de proteção social se traduzem em perdas humanas irreparáveis”, diz a pesquisadora.
Os autores defendem que o país fortaleça os sistemas de registro civil e estatísticas vitais, fundamentais para respostas rápidas em futuras emergências sanitárias. “Sem dados confiáveis, não há como planejar políticas eficazes nem garantir que nenhuma criança fique desamparada”, afirma Barberia.
O estudo também recomenda a criação de programas nacionais de apoio psicológico, escolar e financeiro voltados a crianças enlutadas e cuidadores sobreviventes. Experiências internacionais mostram que combinar transferência de renda com apoio parental reduz os impactos da perda e melhora o desenvolvimento emocional das crianças.
No Brasil, ações pontuais surgiram durante a pandemia, mas não se transformaram em política de Estado. “O país ainda trata o luto como uma questão privada, quando, na verdade, é um problema público e coletivo”, diz Barberia.
O alerta dos pesquisadores vai além da Covid. Mortes por violência, acidentes, desastres climáticos e doenças crônicas também produzem órfãos diariamente, muitas vezes em contextos de vulnerabilidade.
“Vivemos em um cenário de policrises [sanitárias, ambientais e sociais] que afetam as famílias de forma contínua. A proteção das crianças precisa estar no centro da preparação para qualquer emergência futura”, afirma a pesquisadora.




