SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando o relator do projeto de regulamentação do streaming, Doutor Luizinho (PP-RJ), falou que ninguém ficaria 100% satisfeito com o seu relatório, ele não estava mentindo.

O deputado apresentou na última segunda (27) o relatório do projeto de regulamentação do streaming, ou VoD —sigla para vídeo sob demanda. A grita foi tamanha que, só nesta sexta (31), o parlamentar apresentou duas novas versões do texto.

São diferentes frentes nesse campo de batalha —a Agência Nacional do Cinema, Ancine, produtores independentes, plataformas abertas, como o YouTube, e fechadas, como a Netflix. Todos têm suas críticas.

A lei define a Condecine-streaming, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, a ser cobrada de plataformas como Netflix, Prime Video, Globoplay, YouTube, Instagram e TikTok.

Os recursos arrecadados vão para o Fundo Setorial do Audiovisual, o FSA, gerido pela Ancine, que é de onde saem editais e outros programas de fomento ao audiovisual brasileiro. Porém, a maior parte do dinheiro devido poderá ser gasto diretamente pelas plataformas.

O principal ponto em jogo é a alíquota de taxação às plataformas. O relatório de Luizinho pôs a alíquota em 4%, calculada em cima do faturamento anual após tributos indiretos. Para plataformas como YouTube, Instagram e TikTok, a alíquota é de 2%.

O Ministério da Cultura defende que seja 6%. A associação das grandes empresas de streaming, a Strima, defendia 3%, calculados após os descontos das obrigações tributárias. Empresas de tecnologia como YouTube defendem que não haja cobrança nenhuma para eles. Já o movimento VOD12, formado por produtores independentes, sindicatos e associações, advogava por 12%.

O segundo ponto em tensão é sobre quem decidirá para onde o dinheiro vai. A maior parte da Condecine-streaming poderá ser deduzida na forma de investimento direto pelas plataformas licenciando produções que elas próprias escolherem, desde que brasileiras. Ou ainda remunerando influencers, no caso de redes como YouTube e TikTok —a disputa é sobre qual porcentagem poderá ser gasta desta forma, diretamente pelas plataformas de streaming.

Há ainda discussões sobre cotas mínimas para obras nacionais e sobre vantagens e garantias para serviços que tenham mais conteúdo brasileiro em catálogo.

São três grupos principais —as plataformas fechadas, como a Netflix, os cineastas nacionais independentes e as plataformas abertas, como o YouTube. Entenda quem é quem nesse tabuleiro.

*

PRODUTORES INDEPENDENTES

O lado dos produtores audiovisuais independentes inclui associações e entidades de diferentes categorias e territórios. Em comum, eles se queixam de terem pouco acesso tanto o MinC quanto ao relator.

“O governo Lula fez muito pelo cinema nos seus primeiros mandatos. Está na hora de voltar a dar um tratamento de prioridade, de indústria”, diz Alfredo Manevy, cineasta, ex-presidente da Spcine e ex-secretário-executivo do MinC no segundo mandato de Lula como presidente. “O governo precisa colocar capital político nessa negociação do streaming no Congresso, ou teremos uma regulação mais favorável às big techs do que ao cinema nacional.”

“A proposta enfraquece o conceito de produção independente brasileira, detona o arcabouço legal da nossa indústria e 30 anos de árdua construção, cede maior porcentagem da Condecine à livre escolha das plataformas. Soberania zero”, diz Minom Pinho, diretora da Apaci, a Associação Paulista de Cineastas.

Em manifesto recente, uma série de associações, distribuidoras e produtoras afirmou que o relatório de Doutor Luizinho se curvava para o lobby das big techs. Eles pediam alíquota mínima de 6% sobre o faturamento bruto.

Pedem cota mínima de 20% de conteúdo brasileiro independente nos catálogos, com garantia de destaque nas interfaces.

Há no texto um dispositivo que define que 30% dos recursos arrecadados junto ao streaming sejam direcionados para produções no Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o que era um pleito já antigo do setor.

Luizinho incluiu também, em seu relatório, que 20% devem ir para produtoras das regiões Sul e Sudeste —excetuados os municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo. Isso foi visto como um aceno de Luizinho para o seu próprio quintal, já que a base eleitoral dele, Nova Iguaçu, na região metropolitana do Rio, poderia se beneficiar disso. O deputado nega qualquer tipo de favorecimento.

Há nesse grupo, também, as produtoras do eixo Rio-São Paulo de maior porte, que costumam ser menos vocais no que diz respeito a manifestos contra o governo ou plataformas estrangeiras. Elas tendem a concordar com a possibilidade de investimento direto por partes dos streamings.

PLATAFORMAS DE STREAMING FECHADAS | NETFLIX, HBO MAX, AMAZON PRIME VIDEO, GLOBOPLAY, DISNEY+

As plataformas fechadas são o grupo composto por serviços como Disney+, Netflix, HBO, Prime Video e Globoplay, unidas em uma associação, a Strima.

Na visão de uma pessoa ligada a um desses serviços, ouvida sob condição de anonimato, o relatório de Luizinho ignorou praticamente todos os questionamentos deles e apenas atendeu a pedidos de menor impacto.

Em reunião com Ministério da Cultura em agosto deste ano, a associação apresentou um documento pedindo que a alíquota fosse de 3%, calculados em cima do faturamento líquido —isto é, após os descontos das obrigações tributárias.

A Strima também propôs que 70% da Condecine pudesse ser revertida para investimento direto por parte das empresas de streaming.

Após a divulgação do relatório de Luizinho, a Strima afirmou, em nota, entender que o “substitutivo apresentado ainda precisa de discussões, para melhor refletir pontos importantes já amplamente debatidos em estágios anteriores da tramitação do assunto”.

Essas plataformas se ressentem pelo fato de YouTube, Meta, Kwai e TikTok poderem pagar metade da alíquota que Netflix, Prime Video e outras. Para estas últimas, trata-se de “um benefício injustificado”. A Strima diz que essas redes abertas não estariam investindo diretamente com aquisição e produção de conteúdo audiovisual brasileiro.

Para uma pessoa ligada a uma plataforma fechada, a diferença da alíquota é um favorecimento e pode ser entendida como onerosidade regulatória. Há um sentimento de que as big techs não abriram mão de nada, enquanto os membros da Strima disseram, em documento enviado ao MinC, que concordariam com a retirada de um dispositivo que permitia que 40% da dedução pudesse ser utilizada em produções de propriedade intelectual das grandes plataformas.

PLATAFORMAS ABERTAS | YOUTUBE, META, TIKTOK, KWAI

As plataformas abertas se diferenciam por não terem curadoria nem controle editorial dos conteúdos —ou seja, são os usuários que alimentam o catálogo. Por trás delas, estão grandes conglomerados como Google, Meta e ByteDance.

À Folha, o Conselho Digital, associação que reúne Google, Kwai, Meta, TikTok e Hotmart, se posiciona contrariamente a qualquer alíquota aplicada a seus associados.

“Não é adequado que a Condecine incida sobre plataformas de conteúdos produzidos diretamente por usuários”, afirma em nota. “Esses conteúdos são manifestações espontâneas e pessoais, e não se enquadram na lógica de produção profissional do audiovisual tradicional.”

Além de pagar uma alíquota menor, 70% do valor devido poderá ser revertido para a remuneração de criadores de conteúdo que alimentam suas plataformas —uma despesa que as plataformas já têm.

Uma das principais queixas dessas plataformas era a de que seriam obrigados a pagar a Condecine, mas não conseguiriam usufruir dos recursos do FSA.

Isso porque o criador de conteúdo teria grandes dificuldades em participar de editais da Ancine. Primeiro, porque se inscrever num edital é algo que demanda conhecimento técnico que um influencer autônomo, no geral, não tem. Segundo, o fomento público é demorado, o que seria incompatível com o tempo e o processo de trabalho dos youtubers.

Pessoas ligadas a essas plataformas, ouvidas sob condição de anonimato, defendem que o modelo de negócios tem muito menos previsibilidade do que as plataformas fechadas. Ao contrário, não têm grade de programação, licenciamento de obras de influencers, nem garantia de que o criadores vão continuar postando seus vídeos.

Em paralelo, no relatório de Luizinho, há um dispositivo que proíbe plataformas abertas de excluírem conteúdos de comunicação pública, como no caso de canais de prefeituras ou órgãos públicos no YouTube, Meta, TikTok.

Ainda segundo pessoas ligadas a essas plataformas,é comum que publicações sejam derrubadas por infração de direitos autorais e, sem esse poder, haveria um risco jurídico em jogo. Além disso, em tempos de fake news, há pressão para que as plataformas derrubem conteúdos oficiais em casos como quando um governante publica falas contra a vacinação.