RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A competência quanto à investigação da operação policial que deixou ao menos 121 mortos criou uma fissura entre o MPF (Ministério Público Federal), que buscou informações sobre os procedimentos adotados na ação, e Ministério Público do Rio de Janeiro, estadual, que conseguiu barrar a entrada do seu congênere federal no caso com o aval do Conselho Nacional do Ministério Público.
Em ofício expedido na terça-feira (28), dirigido ao governador Cláudio Castro (PL), o procurador regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) adjunto, Julio José de Araujo Junior, e o defensor regional dos Direitos Humanos, Thales Arcoverde Treiger, ambos do MPF, solicitaram detalhes sobre a Operação Contenção, deflagrada naquele dia, para combater o Comando Vermelho nos complexos da Penha e do Alemão.
Pediram que o governo informasse “detalhadamente de que forma o direito à segurança pública foi promovido, indicando as finalidades da operação, os custos envolvidos e a comprovação da inexistência de outro meio menos gravoso de atingir a mesma finalidade” e questionaram “se foram cumpridas as determinações do Supremo Tribunal Federal na ADPF 635”.
Solicitaram ainda que fossem apresentados documentos sobre: “prévia definição do grau de força adequado e justificativa formal da operação, “atuação dos órgãos periciais”, “uso de câmeras corporais e nas viaturas”, “existência e apresentação ao público de relatório detalhado da operação”; como a operação afetou o funcionamento das escolas, a presença de ambulâncias no local e o “cumprimento das diretrizes constitucionais sobre buscas pessoais e domiciliares”.
Não receberam resposta do governador. Mas a Promotoria estadual recorreu ao Conselho Nacional do Ministério Público, a quem cabe orientar e fiscalizar todos os ramos do órgão fiscalizador brasileiro, para barrar a entrada do ente federal no caso.
O órgão estadual sustentou que “o ato configura ingerência indevida em suas atribuições constitucionais, violando sua autonomia funcional e administrativa, além de representar usurpação da função de controle externo da atividade policial estadual”.
Apontou “violação ao princípio do promotor natural, ao permitir que agentes externos interfiram em atividades de atribuição do MPRJ, sem observância dos critérios legais e regimentais de distribuição de funções” e requereu liminar para suspender o ofício “e todos os seus efeitos”.
A Promotioria estadual também pediu que os autores do ofício “se abstenham de praticar quaisquer atos […] que materializem controle externo pelo PRDC [Procurador Regional dos Direitos do Cidadão] sobre polícias estaduais ou ‘supervisão’ de cooperação capitaneada” pelo MP-RJ com forças estaduais, “especialmente quanto às ações correlatas à megaoperação” do dia 28.
A reportagem teve acesso à decisão do conselho tomada na quinta (30) e assinada pela recém-nomeada conselheira Fabiana Costa de Oliveira Barreto, que acolhe os pedidos do MP-RJ. Promotora do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, ela foi designada -justamente na terça-feira da operação- para presidir a Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP.
Segundo a decisão, “embora o procurador da República Julio José Araujo Junior integre o Grupo de Trabalho instituído pelo CNMP para o acompanhamento da decisão na ADPF 635”, o ofício ao governador não foi feito em nome do colegiado, mas na condição de PRDC [Procurador Regional dos Direitos do Cidadão] adjunto, “de modo autônomo”.
A procuradora Fabiana Barreto também sustenta que as informações requisitadas “não guardam relação com interesse federal, tampouco envolvem bens, serviços ou interesses da União, referindo-se a matérias locais, vinculadas a políticas estaduais de segurança pública e à execução de decisões do STF dirigidas a entes e órgãos do estado do Rio de Janeiro”.
Ela escreveu ainda que a atuação do procurador da República, membro do MPF, “extrapolou os limites de sua competência funcional” e deferiu o pedido de liminar do MP-RJ para suspender os efeitos do ofício e determinar que o Araujo Junior se abstenha de praticar quaisquer atos no caso “que impliquem controle externo ou supervisão sobre forças policiais estaduais ou sobre a cooperação operacional conduzida pelo MP-RJ, até o julgamento final da presente reclamação”.
Procurado pela reportagem, o procurador da República Julio José de Araujo Junior não quis se manifestar.
O clima entre integrantes do MPF é de revolta, sobretudo pelo fato de que foi o próprio MP-RJ quem deflagrou a Operação Contenção, autorizada pela Justiça a partir de pedido do Gaeco (Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado), braço da Promotoria estadual.
“Como o próprio órgão fiador dessa operação vai ter independência para fiscalizá-la?”, questiona a procuradora da República Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Uma das principais queixas sobre a necessidade de investigação independente diz respeito aos laudos periciais dos cadáveres da operação.
“Desde a ditadura, o que garante a impunidade no Brasil são laudos malfeitos”, afirma Eugênia. “Todos os IMLs já têm protocolos para identificar vítimas de execução, sabem aplicá-los, mas é preciso vontade política para isso.”
Organizações da sociedade civil críticas à condução do caso pelo governo do Rio e pelo MP-RJ têm atuado para federalizar a investigação.
Em ofício ao procurador da República Eduardo Benones, a Raave (Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado), que dá suporte psicossocial e judicial a mães de mortos como os da operação do dia 28 afirmou:
“O fato de a instituição supostamente responsável pelo controle externo da atividade política estar diretamente envolvida na operação cria uma situação de ausência de controle externo da atividade policial, motivo pelo qual torna-se necessária a intervenção de órgãos federais de controle do uso da força de Estado.”




