SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em um momento de acirrados debates sobre ética e impunidade no país, o diretor Nelson Baskerville apresenta um olhar tão contemporâneo quanto necessário para a obra do mais polêmico dramaturgo brasileiro. O espetáculo “17x Nelson – Onde os Canalhas Pagam por seus Crimes” é um mosaico que reúne fragmentos das 17 peças de Nelson Rodrigues, do consagrado ao obscuro, tecendo uma narrativa sobre culpa, consequência e a hipocrisia social.

Com estreia em 1º de novembro no Espaço Barra, a montagem coloca 18 artistas em cena, desafiando-os a dar vida a 50 personagens em um turbilhão de paixões e falhas humanas.

“O Nelson Rodrigues sempre disse que o único lugar onde as pessoas pagavam pelos seus pecados era nas peças dele. Esse foi o mote que abracei, aproveitando toda a situação que vivemos –e ainda estamos vivendo–, uma tentativa de, de novo, pegar o Brasil e tentar coibir alguns maus hábitos que temos como sociedade”, reflete Baskerville, em entrevista.

Esta é a terceira investida do diretor em sua missão de decifrar o universo rodriguiano. O projeto, que começou em 2005 com “O Inferno de Todos Nós” e seguiu em 2012 com “Se não é Eterno, não é Amor”, consolida uma trilogia que marcou a cena cultural ao revisitar Rodrigues longe dos clichês, destacando sua atualidade e profundidade psicológica.

Para Baskerville, a obra de Rodrigues é um diagnóstico perene da alma nacional. “Nos anos 1940, o dramaturgo começou a detectar esse tipo brasileiro, racista sem parecer racista, homofóbico sem parecer homofóbico, misógino sem parecer misógino. Uma vida onde as pessoas usam máscaras. Em suas peças, Nelson faz cair essa máscara”, analisa.

O diretor vai além e relaciona a temática ao momento político atual. “Estamos vivendo realmente o final de uma tragédia, e espero que dessa vez os canalhas paguem por seus crimes”, provoca, defendendo a relevância do autor. “Nelson Rodrigues tinha de ser estudado nas escolas, assim como o inglês é alfabetizado com Shakespeare; o francês, com Molière; o alemão, com Goethe. O ensino médio deveria ter uma matéria sobre ele para entendermos a sociedade.”

A gênese do espetáculo está intimamente ligada ao método de Baskerville, que alia a criação artística ao ensino. “Essa peça nasceu de uma oficina. Pela minha vocação de professor, esse é o ambiente onde me sinto muito livre para a criação, e fomento muito a liberdade dos atores”, explica.

Ele relembra suas raízes nos anos 80, uma época de produção independente e colaborativa. “Sempre fizemos teatro desse jeito: juntar as pessoas em torno da pesquisa e depois realizar. É um lugar onde eu divido com eles o ofício de ser ator.” Esse modelo, segundo ele, é uma resposta vital à realidade do mercado. “Os atores saem da escola muito sem colocação. A porcentagem de um ator que sai de uma escola e imediatamente começa a trabalhar é ínfima. O que eu fomento aqui é a necessidade de se juntar, de estudar e de aprender a se produzir.”

Com uma trajetória de mais de duas décadas, Baskerville reflete sobre a evolução de sua linguagem, que ele chama de “Expediente Épico”. “Cheguei a um ponto onde sinto que quase esgotei essa linguagem. Hoje, negocio mais os elementos dramáticos e épicos”, pondera.

Uma máxima do dramaturgo Tennessee Williams serve como sua bússola criativa: “Ele dizia ser o oposto de um mágico, pois enquanto o mágico faz a mentira parecer verdade, ele quer fazer a verdade parecer mentira. Isso me permite certos exageros em cena.” Essa abordagem justifica os momentos de ruptura e estranhamento que pontuam seus trabalhos, sempre com o objetivo de “ter sempre algo que incomode, que seja ácido ou que quebre o fluxo”.

Diferente das edições anteriores, a montagem não segue uma linha cronológica. “A passagem de uma peça para outra é praticamente sem intervalo. Trata-se de um grande desfile de personagens e situações”, descreve Baskerville. A ordem das cenas foi ditada pela dinâmica do elenco e pela encenação, criando um ritmo de colagem vertiginoso.

O cenário, idealizado pelo diretor, é composto por estruturas móveis semelhantes a andaimes, que permitem a criação de múltiplas ambientações em poucos segundos – uma metáfora arquitetônica para a construção e desconstrução das personalidades. Os figurinos de David Parizotti mesclam elementos das décadas de 40 a 80 com toques contemporâneos, borrando as fronteiras temporais e reforçando a atemporalidade dos conflitos.

A trilha sonora é um personagem à parte, tão eclética e multifacetada quanto a obra em questão. “Não poderia ser homogênea, seria insuportável”, justifica Baskerville. O repertório salta de Astor Piazzolla a Queen, de Roberto Carlos à ópera, em uma curadoria que espelha a genialidade e a dissonância do universo rodriguiano. O diretor ainda cita uma descoberta recente: o compositor português Carlos Bica, cuja música “abre um dos espetáculos” com uma fusão de Beethoven e elementos contemporâneos que cria “algo altamente estranho e bacana”.

Para Baskerville, a juventude do elenco não é um detalhe, mas uma potência. “O papel aqui do encenador é realmente abrir o olhar, a mente, dos jovens artistas para a obra do Nelson, que sempre estará em voga, sempre será moderna e contemporânea.” Ele acredita que é através desse encontro entre a nova geração e o texto clássico que a obra se revitaliza e encontra seu eco no presente.

“17x Nelson – Onde os Canalhas Pagam por seus Crimes ” é um projeto de longo prazo que afirma a permanência de Nelson Rodrigues como o grande intérprete dos dilemas nacionais. Na visão de Baskerville, encenar Rodrigues é um ato de resistência e compreensão. “Explorar as complexidades da alma humana é o que torna Nelson Rodrigues um autor obrigatório”, finaliza o diretor, que promete seguir estudando e encenando a obra do mestre “até morrer”.

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17X NELSON – ONDE OS CANALHAS PAGAM POR SEUS CRIMES

– Quando Sáb. e dom., às 20h; Até 30/11

– Onde Espaço Barra – Rua Barra Funda, 519, SP

– Preço R$ 60

– Autoria Nelson Rodrigues

– Elenco Afonso Bispo Jr. (Nego Catra), Carol Rainatto, Dandara Terra

– Direção Nelson Baskerville