SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O céu cai lentamente no Theatro Municipal de São Paulo. Sustentado por três ganchos, um paredão prateado se debruça sobre duas almas condenadas.
“Tutto è finito!”, canta Macbeth, saindo dos aposentos reais com um punhal ensanguentado, e alerta sua mulher e cúmplice. Tudo está acabado: o rei Duncan está morto, é deles o trono da Escócia.
A partitura de Giuseppe Verdi, então, se põe a costurar a flutuação sentimental das personagens no dueto “Fatal Mia Donna”. Barítono e soprano se alternam agilmente para traduzir o abismo em que os personagens se lançaram.
Conforme o marido hesita, a manipuladora Lady Macbeth se levanta de uma poltrona inflável, toma o punhal e retorna ao quarto para incriminar os guardas adormecidos. Ao retornar, um mecanismo na mão da cantora faz o sangue escapar às golfadas, banhando a parede em tinta vermelha. No canto do palco, um enorme escorpião testemunha a cena.
É assim que a nova montagem da ópera “Macbeth” transporta a Escócia do século 11 para uma caverna de alumínio no teatro paulistano, onde se encena um dos pontos mais violentos dos dramas de Shakespeare e entre os mais sombrios da obra de Verdi.
“Queria ir fundo na ideia da opressão que se instaura aos poucos. Para isso, precisava ser da maneira mais simples possível”, diz Elisa Ohtake, responsável pela direção cênica minimalista do espetáculo, adequado para um Dia das Bruxas. Aliás, bruxas não faltam são 36 cantoras do Coro Lírico Municipal, em três vozes, para profetizar o destino trágico dos usurpadores desde a cena inicial.
São elas quem anunciam, na abertura, que Macbeth será rei, pontuando ainda que Banquo, amigo do general, encabeçará uma linhagem de monarcas. A música executada pela Orquestra Sinfônica Municipal, regida por Roberto Minczuk, evoca o ardil das feiticeiras entre vozes arranhadas.
“As bruxas são verdadeiras protagonistas, numa escrita musical dinâmica, com muitas modulações harmônicas”, diz o maestro.
Enquanto isso, o cenário com diversos círculos concêntricos em preto e branco introduz uma geometria que se desdobra ao longo da ópera. Neta da artista plástica Tomie Ohtake, a diretora nega paralelos com o trabalho da avó nome lembrado pela onipresença dessas formas em suas telas, além de ter feito cenários para montagens de “Madame Butterfly” no mesmo palco.
“O círculo dourado é muito forte no texto de Shakespeare”, diz Ohtake, que a certa altura do espetáculo ressalta esse símbolo trazendo um trecho da peça que não está no libretto de Francesco Maria Piave. “Eu traduzi isso como luz, sombras e ecos do espaço. Minha avó usava de maneira abstrata, pictórica, sem lastro.” Elas remetem ainda à última vez que “Macbeth” foi encenado na casa paulistana, há 13 anos, sob a direção do americano Bob Wilson.
Apesar de este ser seu primeiro trabalho em ópera, a diretora mais ligada à dramaturgia corporal do teatro contemporâneo, nota uma continuidade da sua pesquisa. “Shakespeare tem o dom de jogar os personagens no caos, algo que eu estudo cenicamente ao lado da dança e das artes visuais”, diz. Mas, ao longo do processo, ela diz ter notado um falso parentesco entre as linguagens. “O teatro pede por transgressões, já a estrutura da ópera se dá na beleza do canto.”
Ao longo de um mês de ensaios, entendeu que nem toda provocação convinha. Pensou em fazer um coro de bruxos homens para subverter o clichê, mas os timbres não soariam adequados. Cogitou diminuir o número de cantoras no palco, mas isso também afetaria o estrondo sonoro.
Optou em dar mais complexidade a essas figuras por meio dos figurinos, assinados por Gustavo Silvestre e adornados por esculturas de tecido da artista Sonia Gomes, dando um susto de cor no conjunto trevoso. Isso se reflete ainda nos galões de sabão e água sanitária com os quais Lady Macbeth encarnada por Marigona Qerkezi e Olga Maslova em sessões alternadas tenta, em vão, lavar o sangue de suas mãos.
Entre os planos ousados, permaneceu a cena do banquete, no final do segundo ato, quando os súditos recebem Macbeth, com uma coroa de latão que lembra o filme de Orson Welles, após ter cometido seu segundo delito, encomendando a morte de Banquo papel de Savio Sperandio e Andrey Mira.
Assombrado pelo espectro do morto, o rei vivido por Craig Colclough e Douglas Hahn tem um acesso e sobe na mesa. Entre travessas de esfihas, quibes e acarajés, ele se digladia pateticamente contra uma juba de macarrão.
Surpresas como essas remetem à própria natureza do espetáculo que desafiou o cânone do teatro lírico quando de sua estreia, em 1847. Na obra, um dos auges no início da carreira de Verdi, o autor quebrou a tradição ao não por nenhuma história de amor em cena.
Voltou-se a Shakespeare, uma das suas paixões, e estudou como encadear a temática sinistra de forma eletrizante. “É uma escrita misteriosa que depois será referência para filmes de terror”, diz Minczuk. “Ainda assim, é leve e orgânica em meio à escuridão.”
Mas o rigor do italiano recaiu sobretudo nas exigências para Lady Macbeth, cuja voz deveria ser áspera, sufocante e grave. “Ela é o verdadeiro motor da história, um papel que exige diferentes estados de espírito de uma soprano. O canto muda do começo até a cena do sonambulismo”, diz Qerkezi, que já cantou no Theatro Municipal no ano passado, como a Abigaille de “Nabucco”.
Prova dessa versatilidade está no primeiro ato, quando a vilã surge no palco e lê uma carta. É a introdução a sua primeira ária, “Vieni! Taffretta!” venha, depressa, na qual encoraja o marido a tomar a coroa de Duncan. A escrita remete ao período do romantismo, com uma “cabaletta” ária curta, de andamento rápido e repetitiva. “É uma explosão de fogos de artifício para a voz, cheia de floreios e saltos”, diz a intérprete.
Já ao final, perdida em seus pesadelos, a mulher vaga cada vez mais fraca pelo palco e confessa os crimes entre gritos e sussurros o autor propõe que as notas finais se sustentem num fio de voz.
Os estímulos se estendem a cenas como o coro “Pátria Oppressa”, em pianíssimo, e na ária “Ah, la Paterna Mano”, em que o Macduff dos tenores Giovanni Tristacci e Enrique Bravo jura vingança a Macbeth pelos seus desmandos.
E, após tanta escuridão, o desfecho é luminoso tanto na visão cênica de Ohtake, quando o círculo dourado brilha, como musicalmente, no concertato com coro “Macbeth, Macbeth ove?”, um desfecho que Verdi só introduziu numa revisão da obra, em 1865. “Essa música é heavy metal, e tem que emocionar até o fim. É a vocação da ópera”, diz o maestro.
MACBETH
– Quando Ter., qua. e sex., às 20h. Sáb. e dom. (9), às 17h. Até 9/11
– Onde Theatro Municipal – pça. Ramos de Azevedo, s/n, São Paulo
– Preço R$ 39 a R$ 252
– Classificação 12 anos
– Elenco Marigona Qerkezi, Olga Maslova, Craig Colclough, Douglas Hahn
– Direção Elisa Ohtake e Roberto Minczuk




