SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os dois andares que Antonio Manuel ocupa na Galeria Raquel Arnaud, a partir desta quinta-feira (30), são carregados de atmosferas. “Corte Circuito”, com curadoria de Tiago Mesquita, é a primeira mostra individual em São Paulo do português radicado no Rio de Janeiro, nome fundamental da arte experimental brasileira, em mais de uma década.

Apesar da produção intensa desde meados da década de 1960, Manuel não disfarça certa precaução em preencher a galeria com esse retorno. “Eu sempre participei de instituições, que permitem uma amplitude do trabalho. Para mim, uma individual carrega uma exigência muito grande. Não é fácil se expor, você está praticamente nu de novo”, diz.

Ele se refere à ocasião em que apresentou “O Corpo É a Obra”, quando invadiu nu o Salão Nacional de Arte Moderna de 1970, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. “Nem havia a palavra performance na época, era um gesto de contestação à ditadura e um símbolo de liberdade”.

Esse exercício experimental de liberdade, como definiu o crítico Mario Pedrosa à época, segue guiando até hoje o pensamento de Manuel, que segue batendo ponto diariamente no ateliê em Laranjeiras, na zona sul do Rio. “Eu gosto da descoberta, da experiência. O novo me interessa muito. Mas todo trabalho é feito, na verdade, para mim. Não deixo escapar nada do ateliê que não gosto. Rasgo, jogo fora e começo outro.”

Em “Corte Circuito”, o conjunto é uma síntese de interesses e rupturas poéticas que atravessam sua trajetória. O que pôde escapar do ateliê são mais de 30 obras inéditas, além de uma remontagem de “Até que a Imagem Desapareça”, criada em 2013 para uma mostra individual no mesmo MAM carioca que invadiu quando jovem. Na instalação, fotolitos de jornal ficam à mercê de um gotejamento de água que, com o tempo, destroem a emulsão química das notícias ali impressas.

Essa presença não é circunstancial. O artista tem uma relação central com o noticiário impresso que vem desde o início das suas investigações pela arte. Nos anos 1970, por exemplo, apropriando-se dessas estéticas, criou uma publicação com manchetes inventadas na diagramação do jornal O Dia, que produzia clandestinamente no parque gráfico da empresa e distribuía anonimamente pelas bancas cariocas.

No isolamento durante a pandemia da Covid-19, em 2020, debruçou-se na série “Incontornáveis” -páginas de jornal, muitas delas da Folha de S.Paulo, cobertas por esmalte sintético e meticulosamente recortadas com bisturi, guiando o olhar para imagens e trechos de texto.

“Desvelar e revelar, rasgar, são dados de descobertas. Você revela imagens, revela poemas com a precisão de uma cirurgia. É uma concentração muito grande de poética”, diz Manuel.

Os primeiros trabalhos foram publicados no início deste ano num livro-exposição pela BEI Editora. Na Raquel Arnaud, o artista mostra uma nova leva dessas cirurgias, produzida nos últimos meses -abrindo imagens sobre Gaza e o laudo sobre a morte do pianista brasileiro Tenório Jr., assassinado pela ditadura argentina em 1976. “Abrir esses cortes é um gesto inevitável, um equilíbrio entre a poética e o conteúdo político”, diz.

O segundo andar da galeria, por sua vez, abriga uma série abstrata de relevos que exercitam os ideais do seu corpo de obra em contraposições de espacialidades e cores, fazendo homenagens ao cinema e a pensamentos do psicanalista francês Jacques Lacan.

A base das obras são gradis de ferro herdados de quando Manuel montou a instalação “Fantasma” em Erfurt, na Alemanha, em 1995. Guardados desde então no ateliê, ele resolveu trabalhar essa reciclagem em consonância com os “Incontornáveis”. Trocou o bisturi por uma serra de aço e foi abrindo intervalos na estrutura ordenada de grelha, na mesma maneira que provoca rupturas na diagramação exata dos jornais.

“Sem abstração não se vive, não se está no cosmos”, afirma. “Ela é fundamental ao corpo. É maravilhoso, hoje, conseguir abstrair de certa massificação do que nos é exposto. A arte tem essa capacidade de se comunicar de maneira não verbal e fazer frente a essa ditadura da comunicação e da informação extrema”.

ANTONIO MANUEL: CORTE CIRCUITO

Quando Seg. a sex., das 11h às 19h; sáb. das 11h às 15h. Até 24 de janeiro

Onde Galeria Raquel Arnaud – r. Fidalga, 125, São Paulo

Preço Grátis