SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos anos 1990 e 2000, havia um ritual comum às crianças brasileiras preparar um copo de achocolatado, se esparramar no sofá e ligar a TV para ver desenhos que davam medo e faziam rir, como “Coragem, o Cão Covarde” e “Scooby-Doo”. Só que obras infantis de horror e comédia, antes exibidas à exaustão nas telinhas e no cinema, vêm sumindo sem deixar muitos vestígios.
Filmes do tipo lançados àquela época, como “Convenção das Bruxas” e “Abracadabra”, por exemplo, ganharam novos capítulos nos últimos cinco anos sem o tom sombrio que fizeram deles marcantes.
Um caldeirão de motivos levou a essa mudança. De um lado, pais cada vez mais receosos com o que os filhos acessam, que por sua vez não veem mais conteúdo infantil na TV aberta por causa das leis sobre publicidade para crianças que não existiam no passado. Há ainda o medo dos estúdios de assustar a audiência em tempos amaldiçoados para as bilheterias.
Uma exceção é o filme “Frankie e os Monstros”, lançado na semana passada, sobre um garoto feito de retalhos que habita um castelo repleto de criaturas esquisitas. Na onda do Dia das Bruxas, nesta sexta-feira, os cinemas estão exibindo também “A Noiva Cadáver”, animação que completa 20 anos, além de “Paranorman”, filme de 2012 sobre um menino que conversa com fantasmas.
O streaming, que não sofre das mesmas amarras da televisão, se tornou o espaço mais seguro para esse tipo de obra. É o caso da série “Wandinha”, da Netflix, sobre a garota da Família Addams, que lançou sua segunda temporada este ano e virou um fenômeno infantil apesar de ser indicada para maiores de 16 anos e cuja produção, não à toa, é ligada a Tim Burton, um dos nomes que melhor soube equilibrar terror e humor no audiovisual recente.
São casos à parte. Há anos os arrepios saíram das prioridades de grandes estúdios como a Disney, que por décadas ostentou um panteão de personagens assustadores e agora parece temer criar antagonistas puramente maus.
Seus novos vilões são dúbios, redimidos ou atrapalhados. A Cruella, que nos desenhos dos anos 1990 queria arrancar a pele de dálmatas indefesos, foi transformada em mocinha incompreendida no live-action de 2021. As bruxas de “Abracadabra” ficaram mais panacas na sequência de 2022, e até a Malévola virou coitadinha no filme de 2014.
A animação “Wish – O Poder dos Desejos”, lançada há dois anos, até tem um vilão maquiavélico, mas só porque o objetivo do estúdio era homenagear seus cem anos de história com elementos do passado. E o feiticeiro bonitão de “Wish” está longe de causar o mesmo assombro que personagens como a bruxa verruguenta de “Branca de Neve”, de 1937, ou a Úrsula de “A Pequena Sereia”, de 1989.
Para a britânica Catherine Lester, que fez doutorado sobre filmes de terror para crianças na Universidade de Warwick, do Reino Unido, a mudança é positiva porque ensina ao público infantil que não existem só pessoas boas ou más no mundo. “Mas nos afastamos do vilão clássico, e isso é uma pena. A cultura se tornou avessa ao risco quando se trata de crianças.”
Ao sumir das telas, o horror infantil levou junto a chance de as crianças experimentarem medo em um ambiente seguro, afirma o cineasta Cao Hamburger, criador da série “Castelo Rá-Tim-Bum”. “O medo tem um papel na formação emocional da criança. Se tira, empobrece”, ele diz.
Para encontrar o tom e evitar assustar a audiência de “Castelo Rá-Tim-Bum”, Hamburger fazia reuniões com pedagogos e os diretores da TV Cultura, o canal que exibiu a série originalmente entre 1994 e 1997. Fez parte desse filão também outra série da emissora, “Mundo da Lua”, que tem um episódio assombroso em um sonho do protagonista, o Lobo Mau lambe os beiços após saborear crianças.
É difícil imaginar uma cena do tipo sendo exibida na TV aberta hoje. Desde 2014, uma resolução do Conanda, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, proibiu a exibição de publicidade para crianças na televisão, o que acabou com a principal fonte de renda dos programas de desenhos. Isso levou ao fim da TV Globinho, em 2015.
A mudança tem a ver também com a forma como programas, filmes e séries recebem classificação indicativa no país. Nos anos 1990, cada emissora e distribuidora tinha autonomia para definir a idade indicada para seus produtos. Desde 2006, porém, a decisão passou a ser do Ministério da Justiça, que leva três fatores em consideração sexo e nudez, violência e drogas.
Segundo Eduardo Nepomuceno, coordenador de Políticas de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça de São Paulo, elementos de horror só aumentam a classificação indicativa se estiverem vinculados aos critérios-base. Ou seja, “Frankie e os Monstros”, livre para todas as idades, passou no teste, mas “A Noiva Cadáver” acabou recomendado para quem tem mais de dez anos por conter “medo e violência”.
E mesmo que a violência seja exibida de forma atenuada ou lúdica, como costuma ser nesses desenhos infantis, “sua associação a contextos que promovam ou justifiquem a prática de atos violentos pode resultar na elevação da faixa etária”, afirma Nepomuceno.
“A Noiva Cadáver” foi dirigido por Tim Burton, que comanda também a série “Wandinha”. Ele explodiu nos anos 1990, quando sua estética gótica cativou o público em “O Estranho Mundo de Jack”, que mistura Natal e Halloween. Em 2010, ele fez uma versão sombria de “Alice no País das Maravilhas” que bateu US$ 1 bilhão na bilheteria.
Mas, com a baixa no interesse por horror infantil, Burton viveu uma derrocada. Sua refilmagem de “Dumbo” em 2019 não deu certo, e ele tampouco agradou com “O Lar das Crianças Peculiares”, de três anos antes. “Essa coisa do politicamente correto, tomara, vai passar. Hoje em dia os estúdios estão em pânico com isso. Você não pode, por exemplo, brincar com a morte”, disse o cineasta à Folha em 2022.
Burton é uma das referências de Steve Hudson, diretor de “Frankie e os Monstros”, que culpa os executivos dos estúdios pelo sumiço do horror para crianças. “Pode ter a ver também com a velha ordem desmoronando e mostrando a sua feiura. Será que estamos menos inclinados a buscar o terror na ficção quando podemos vê-lo ao vivo em nossos celulares?”, diz Hudson, por email.
É o que sugere também Victor-Hugo Borges, criador da série de animação “Historietas Assombradas (Para Crianças Malcriadas)”, que passou no canal Cartoon Network entre 2013 e 2016. A obra mostra as aventuras vividas por um garoto e sua avó bruxa entre criaturas sobrenaturais, como a Loira do Banheiro.
“Existe muita histeria em algumas figuras paternas e isso atrapalha essas obras. Se você não cuida bem dos filhos, quer achar motivo em algum lugar para eles não estarem bem”, diz Borges. “É claro que temos de tomar cuidado, não queremos machucar a cabeça de ninguém, mas existe equilíbrio para tudo.”
Estariam, então, as crianças confinadas em uma bolha de excesso de proteção? A psicóloga infantil Giulia Tavares diz que sim. “Temos que evitar causar trauma e desconforto. Mas até que ponto não estamos tirando um trauma e colocando outro no lugar? A pessoa não deixa o filho ver Coragem, o Cão Covarde, mas às vezes deixa ele sozinho no quarto suscetível a vídeos de conteúdo muito mais prejudicial.”
John Dilworth, o criador de “Coragem, o Cão Covarde”, exibido no Brasil pelo Cartoon Network e no SBT, disse que só daria entrevista mediante uma taxa de US$ 3 por minuto, ou cerca de R$ 16. Após a produção, que durou entre 1999 e 2002, ele não conseguiu criar outra obra de sucesso. Já era esse, talvez, um sinal dos tempos.
FRANKIE E OS MONSTROS
– Quando Em cartaz nos cinemas
– Classificação Livre
– Produção Reino Unido, Alemanha, Luxemburgo, França, 2025
– Direção Steve Hudson
A NOIVA CADÁVER (RELANÇAMENTO)
– Quando Em cartaz nos cinemas
– Classificação 10 anos
– Produção Estados Unidos, 2005
– Direção Tim Burton




