SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As 121 mortes até agora contabilizadas na megaoperação contra o Comando Vermelho no Rio de Janeiro vão em direção oposta ao plano de letalidade mínima exigido pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) das Favelas, afirmam especialistas ouvidos pela reportagem.
Mas este não é um argumento unânime, e há quem diga que as determinações da corte no âmbito da ADPF contribuíram, na verdade, para a expansão das áreas dominadas pelo crime no Rio de Janeiro. Para esses, coube à polícia reagir frente ao poderio bélico das facções.
A reportagem fez as mesmas perguntas a todos os entrevistados.
Ajuizada em 2019 pelo PSB, a ação argumentou que as políticas de combate ao crime do então governador Wilson Witzel violavam precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos e pedia o reconhecimento do chamado “estado de coisas inconstitucional” no âmbito da segurança pública fluminense.
Em 2020 o Supremo concedeu liminar (decisão provisória) impondo uma série de restrições à polícia do Rio, entre as quais limitações ao uso de helicópteros permitidos somente em situações excepcionais nos termos dessa primeira decisão e a proibição de operações em regiões próximas a escolas, creches e hospitais.
São medidas que vigoraram até abril deste ano, quando o julgamento foi concluído. A decisão derrubou restrições a aeronaves e a proibição de operações próximas a unidades de ensino ou de saúde, mas impôs condições à política de segurança pública do Rio de Janeiro.
A começar por um plano de redução da letalidade policial. Relator do caso, o ministro Edson Fachin acatou normas editadas pelo governo Claudio Castro como parte desse plano e, adicionalmente, determinou adequações no arcabouço normativo para a redução das mortes.
A operação desta terça, afirma o advogado Conrado Almeida Corrêa Gontijo, doutor em direito penal pela USP, vai na contramão dessa meta. “A operação contrasta com noções básicas de direitos humanos e de democracia. O que se viu na terça foi um massacre praticado pelo Estado, completamente inaceitável, e que merece firme repúdio de toda a sociedade”, diz.
Avaliação diferente faz o advogado Daniel Bialski, mestre em processo penal pela PUC-SP, para quem as determinações foram respeitadas. “Se a polícia não tivesse sido atacada a tiros, granadas, drones e bombas, o que vitimou policiais, não teria havido confronto e o saldo seria a prisão de todos os alvos. Dizer o contrário é uma inversão de valores”, afirma.
Como mostrou a Folha, membros do Comando Vermelho chegaram a utilizar drones com garras improvisadas para lançar bombas contra policiais, numa tentativa de atrasar o avanço da operação.
Ponto sensível da decisão do Supremo sobre a ADPF está na determinação por um plano de recuperação do território dominado. A medida, segundo o relator Edson Fachin, deve observar “princípios do urbanismo social e com o escopo de viabilizar a presença do poder público de forma permanente”.
Mesmo especialistas críticos à ação desta terça-feira admitem que esta é uma tarefa complexa.
“O problema é que o poder bélico das facções afronta a presença estatal e gera um ciclo de confronto e abandono. Sem impedir o ingresso de armamentos nesses territórios e sem asfixia financeira, qualquer reocupação é frágil”, diz Filipe Papaiordanou, especialista em direito penal econômico pela Universidade de Coimbra.
Para ele, “nenhuma operação com mais de 100 mortos pode ser considerada um sucesso”, como afirmou o governador.
Além dos planos pela redução de letalidade e reocupação de territórios, o STF determinou também a obrigatoriedade de uso de câmeras e, entre outras coisas, a atuação da Polícia Federal (PF) para apurar indícios de crimes interestaduais ou internacionais. O governo do Rio afirmou que PMs usavam câmeras, mas parte da ação no Rio pode não ter sido gravada por falta de bateria.
O maior problema, na avaliação do coronel da PM aposentado Frederico Afonso, advogado e ex-membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB São Paulo, está no intervalo entre a decisão liminar que impôs restrições à atuação da segurança do Rio e a final, que derrubou parte delas.
Para ele, “sobram especialistas em segurança pública, mas faltam especialistas em ciências policiais”.
“O efeito colateral da ADPF foi a expansão do tráfico no Rio de Janeiro, inclusive com migração de criminosos de outros estados, com restrições que ampliaram o espaço de atuação e o poder territorial das facções”, disse à Folha, citando relatório do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
O documento, produzido a partir de informações das polícias Militar e Civil do Rio de Janeiro, diz ser “evidente que o Comando Vermelho, a maior organização criminosa do Rio de Janeiro, está expandindo suas operações e buscando maximizar seus domínios territoriais.
Euro Bento Maciel Filho, mestre em direito penal pela PUC, aponta uma ressalva. “Ao mesmo tempo em que facções ganhavam territórios, cabia ao poder público desenvolver estratégias para se fazer presente nas comunidades”, diz.




