SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Algemado, um homem deixa um banheiro público. Minutos antes, ele era atraído pelos sorrisos de um policial. Na falta de outras pessoas, o único crime teria sido sua sexualidade. É o que diz um artigo do Los Angeles Times, que descreve uma série de batidas para aprisionar gays, numa cena que poderia ter acontecido no milênio passado, mas cujo relato foi publicado em 2016.

Pouco depois de sair do armário, o cineasta Carmen Emmi voltou a temer sua revelação depois de ler a reportagem. O medo levou ao seu primeiro longa-metragem, “À Paisana”, premiado em Sundance e em cartaz na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Próximo ao irmão, que durante o desenvolvimento do projeto treinava para virar policial, ele estudou essas operações e deu à luz Lucas, papel de Tom Blyth, agente responsável por várias prisões do tipo e que esconde a própria natureza.

Prestes a terminar com a namorada, Lucas se apaixona por uma vítima em potencial e começa um romance proibido com Andrew. Os riscos aumentam quando ele perde uma carta do amante num jantar de ano novo com a família. Em meio a busca pelas confidências, o filme mistura passado e presente e retrata as crises do protagonista.

“Comecei a escrever o roteiro como parte de um experimento que estava desenvolvendo na terapia. Enfrentei a ansiedade por toda a minha vida e tive que voltar ao passado e descrever a primeira vez em que me senti assim num dos primeiros exercícios que fizemos”, conta Emmi. Foi daí que veio a ideia de situar a trama na década de 1990, quando o diretor cresceu. “Era uma forma de conversar com a minha versão mais jovem.”

Para representar os surtos de ansiedade que Lucas enfrenta, Emmi reúne diferentes texturas visuais. A nitidez de câmeras recentes e os pixels de modelos antigos se encontram para representar a fragilidade do policial. As montagens em que a mistura acontece, inclusive, costumam ser rápidas e apresentar muitos cortes. A ideia, segundo o cineasta, era representar lapsos e desejos reprimidos que consomem a mente do protagonista.

“Foi assim que vi minhas memórias de infância quando pensei sobre elas. Queria que o filme representasse o turbilhão de pensamentos que atravessam a cabeça de alguém ao lidar com um trauma.”

Os cenários escolhidos amplificam os ruídos dessa miscelânea visual. Seja o primeiro beijo nos fundos de um cinema antigo, seja o sexo intenso no banco de trás do carro, a narrativa elege uma diversidade de não lugares —geralmente reconhecidos como espaços de trânsito, são locais marcados por interações que duram pouco mais que alguns minutos— como palco para o relacionamento entre Lucas e Andrew.

Ainda que boa parte das cenas aconteçam em ambientes apertados, empoeirados e de baixa iluminação, chama atenção como a câmera privilegia a proximidade aos atores e os põe no centro dos enquadramentos. Apesar dos arredores precários e da brevidade dos encontros, os dois vivem momentos de fuga e se sobrepõem aos obstáculos.

“Queria que todos os lugares em que eles se reunissem fossem lindos. Conexões como essa costumam acontecer em rachaduras da sociedade. Mas, na minha trajetória, isso não impediu que elas fossem extremamente bonitas”, afirma Emmi, citando uma das poucas sequências que talvez se diferencie das demais.

Prestes a vivenciar a sua primeira vez, Lucas agarra o corpo de Andrew numa estufa isolada, onde crescem flores com as mais variadas cores. “É a primeira cena em que nos deparamos com um espaço verdadeiramente colorido. Queria que a experiência inicial de Lucas acontecesse em um lugar vibrante”, diz Emmi.

Os amantes se deitam, tiram as roupas lentamente e descrevem sonhos para um futuro impossível. Eles ocupam uma espécie de fortaleza particular. A beleza do interior parece não dialogar com o mundo, discriminador.

“Muitos se enxergam em Lucas. Depois das sessões, muitos me dizem o quanto se sentiram representados. Não são apenas as pessoas queer que escondem segredos. O cinema pode ser terapêutico se você se sentir visto na tela.”