RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Num intervalo de três meses em 2021, a cozinheira e empregada doméstica Regiane Pires, 41, perdeu seu filho caçula, de 18 anos (em fevereiro daquele ano), e um irmão (em maio).

Ambos foram mortos em operações policiais, o primeiro em Nova Iguaçu, onde ela mora ainda hoje, e o segundo em Jacarezinho, no massacre que até há pouco era o mais letal da história do Rio.

Nesta quarta, dia seguinte à ação policial do governo Cláudio Castro que deixou pelo menos 121 mortos e tem sido classificada por entidades de direitos humanos como o maior massacre da história do país, Regiane estava numa unidade do Detran vizinha ao IML (Instituto Médico Legal), na região central do Rio, oferecendo apoio a quem está vivendo o horror que ela viveu quatro anos atrás.

A cozinheira é uma das cem mães pesquisadoras da Raave (Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado), organização que oferece suporte psicossocial e acesso à Justiça às tantas famílias que enfrentam esse problema na capital fluminense.

Graças a um convênio com o Ministério da Justiça, as cem mães que integram o grupo são bolsistas de extensão na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e atuam em 11 núcleos espalhados pela região metropolitana do Rio junto com uma equipe de mais cerca de 40 pessoas (grupos de apoio clínico, psicossocial e jurídico).

“Deixei meu luto pra lutar”, resume Regiane. “Não tivemos apoio de ninguém do Estado quando mataram os nossos, aí montamos esse grupo. Continuo tendo assistência psicológica e jurídica. Agora ajudo e sou ajudada.”

Quando conversou com a reportagem, ela já tinha acolhido cinco famílias de mortos na ação de terça-feira. “Umas não tinham nem noção do que ia acontecer lá dentro [do IML], que um defensor público poderia ir junto para reconhecer o corpo. Outra família queria mandar o corpo para o Pará e não sabia se ele ficaria na geladeira até liberarem”, disse Regiane, para logo comparar com sua própria experiência.

“O corpo do meu irmão, por exemplo, estava com muito mau cheiro quando liberaram, porque não colocaram na geladeira. Se no [massacre do] Jacarezinho foram 28 mortos e ainda ficou com mau cheiro porque não tinha geladeira, imagina agora… Tem geladeira pra isso tudo?”

Coordenador da Raave, o advogado Guilherme Pimentel, ex-ouvidor da Defensoria Pública do RJ, relatou que a entidade busca trabalha para colocar de pé uma proposta de política pública baseada nos Pontos de Cultura: os “Pontos de Acolhimento, Justiça e Cuidado”, onde aconteceriam cafés da manhã, saraus e rodas terapêuticas com famílias vítimas da violência.

“A realidade só vai ser alterada com práticas de cuidado que fortaleçam a experiência coletiva. Não vai brotar um salvador, só a ampla mobilização das bases pode virar o jogo virar jogo trauma fragiliza tecido social, temos de fortalecer pra dar respostas”, disse Pimentel.

Uma das famílias a que Regiane e a Raave ofereceram ajuda no IML foi a de Raquel Rodrigues Rios, cujo filho Rafael, de 19 anos, foi morto na serra da Misericórdia, região de mata entre os complexos da Penha e do Alemão.

Raquel pedia desesperada a integrantes da Defensoria Pública que davam plantão no local para liberarem o corpo do filho para sepultamento. “Não liberaram porque a quantidade de corpo excede a capacidade de dar suporte. Estão mandando as famílias de volta para casa dizendo que telefonam quando for liberado”, afirmou José Aparecido Batista, sogro dela.

Era o terceiro suplício de Raquel em dois dias. O primeiro foi a busca pelo filho de noite na mata, com a ajuda de parentes, auxiliados por lanterna de celular. O segundo, achar o corpo do filho degolado e a cabeça exposta em uma árvore –integrantes da família depois enviaram à reportagem vídeos com a imagem macabra.

“Como é que uma mãe que passou a noite na mata procurando filho e viveu isso tudo vai pra casa esperar telefonema?”, disse Batista. Aos 51 anos, morador a vida inteira do Alemão, disse nunca ter presenciado nada parecido como a carnificina da terça-feira.

Uma prima de Raquel que se identificou como Ester e ajudou nas buscas na mata sintetizou: “A gente tropeçava nos corpos. Foi massacre mesmo”.