MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – Hipóteses extraordinárias exigem evidências idem. E nada mais extraordinário que fincar na mata 96 torres de 30 metros, com orçamento de R$ 260 milhões, para descobrir se a amazônia seguirá ajudando a salvar o clima ou se abandonará a humanidade a uma espiral de aquecimento, vendavais, enchentes e incêndios.
Nesta véspera da COP30, termina a instalação do AmazonFace (pronuncia-se “feice”, sigla em inglês de “experimento de carbono ao ar livre”). No cinema poderia ser a infraestrutura da arma de inimigos de James Bond para dominar o mundo, mas em realidade é a maior instalação científica do planeta numa floresta tropical.
Cada uma das pilastras sustenta um par de tubos pretos com furos pelos quais sairá um fluxo de dióxido de carbono (CO2). A ideia é aumentar em 200 partes por milhão (ppm) a concentração do principal gás do efeito estufa no local, para simular a alta das emissões nas próximas décadas, e medir como a natureza reage. Hoje, por exemplo, o incremento seria de 420 ppm para 620 ppm.
Os R$ 260 milhões são o valor orçado para o funcionamento da experiência por dez anos. O projeto passou a ser discutido no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação há 15 anos, quando o climatologista Carlos Nobre era secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCTI, e desembolsos decisivos vieram ainda no governo Bolsonaro, apesar do negacionismo climático.
O custo do megaexperimento vem sendo repartido entre os governos brasileiro e britânico, neste caso o serviço meteorológico MetOffice. São os principais financiadores, após um aporte do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que apoiou o desenvolvimento do projeto inicial.
As pilastras estão dispostas em seis círculos de 30 metros de diâmetro com 16 unidades cada, numa área de floresta em estudo desde a década de 1990 a cerca de 80 quilômetros ao norte de Manaus. Todos os seis arranjos são iguais, mas só três farão a injeção de CO2, ficando os outros como áreas de controle onde só ar ambiente sairá dos tubos.
Dito de outro modo, serão intervenções idênticas na mata exceto pelo CO2, variável de interesse isolada, como manda a metodologia experimental. Não deixa de ser extraordinário que até metade do gasto na construção se destine a criar uma área de controle para comparação, ou seja, o mesmo tipo de interferência, mas sem usar a parafernália instalada para injetar o gás carbônico.
“O Face é hoje talvez o maior experimento a céu aberto de mudanças climáticas do mundo”, diz o ecólogo e meteorologista da Unicamp David Lapola, um dos coordenadores científicos. “Ele busca entender, reduzir incertezas de uma das maiores fontes de incerteza para o futuro da amazônia, o papel que o aumento de gás carbônico teria sobre a floresta, principalmente o efeito fisiológico direto.”
O outro coordenador no Brasil é o engenheiro florestal Carlos Alberto (Beto) Quesada, um especialista em solos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) em Manaus. Ele chama a atenção para a quantidade de medições que serão feitas nos dez anos previstos do Face, parte delas já iniciadas uma década atrás.
“A gente tem hoje uma oportunidade única, que possivelmente só o AmazonFace hoje consegue, pensando em florestas tropicais no mundo, de olhar num mesmo lugar todos esses processos ao mesmo tempo”, afirma Quesada. “O maior desafio é olhar para isso de forma integrada e obter uma visão sistêmica, holística, em que todos esses processos estão interagindo.”
São mais de cem pesquisadores e técnicos envolvidos nas observações. Para tomar medidas, a equipe conta com torres centrais de 37 metros, em dois dos círculos, e quatro gruas de construção civil com 45 metros de altura dispostas entre eles.
Cada “braço” dos guindastes tem 50 metros de comprimento que pode girar 360 graus. Após atuar na construção, a grua serve agora para suspender cientistas em gôndolas até a copa das 423 espécies de árvores presentes ali.
Em quatro dias de visitas ao local, a reportagem da Folha acompanhou uma dezena de medições. Trabalho de minúcia filigranada, originando uma montanha de informações e imagens que algoritmos de computador convertem em quantidades e índices para alimentar um pantagruélico banco de dados.
Câmeras no alto das torres, voando em drones ou operadas do chão registram variações no dossel da floresta. Quase nada escapa desses olhos onipresentes, da temperatura à quantidade de flores ou frutos e área de folhas disponíveis para fotossíntese, processo chave que permite à vegetação crescer.
Só as câmeras fenológicas instaladas nas duas torres centrais captam 360 instantâneos da folhagem, cada uma, por dia. Tudo para acompanhar o comportamento das plantas no período de luz, das 6h às 18h.
A gôndola suspensa pela grua carrega até os galhos mais altos operadores de um aparelho capaz de medir a fotossíntese em ação numa folha individual. O dispositivo é clipado na superfície foliar para registrar, em dez árvores por círculo, os gases que a planta troca com a atmosfera por meio dos estômatos, poros por onde entra CO2 e sai vapor d’água (evapotranspiração).
No solo, técnicos coletam tudo que cai nas armadilhas de serrapilheira. São 30 cestas de tela verde armadas (cinco por círculo) para reter material -folhas, flores, frutos, sementes, gravetos, insetos, fezes de animais– que será levado a Manaus para separação, classificação e escaneamento de cada folha morta, de modo a estimar a área foliar perdida.
O crescimento das árvores se mede pelo método DAP (diâmetro à altura do peito). Soa prosaico, ainda que a mensuração se faça com cintas metálicas ao redor da árvore que, conforme o tronco engrossa, alarga uma abertura indentada a ser medida com um paquímetro digital.
No tronco das árvores há instrumentos fixados para analisar substâncias em circulação na planta. Um sensor penetra até o xilema, camada de tecido vascular da árvore, para mensurar o fluxo de seiva em dez indivíduos por parcela, 60 no total.
A cada 15 dias um especialista conecta o aparelho a um laptop para baixar a massa de dados registrados de 30 em 30 minutos. Estima-se que cada árvore transporte 10 a 230 litros por dia do solo até a copa.
Tubos transparentes com 2 metros de comprimento fincados em diagonal no chão permitem a entrada de escaneadores minirhizotron. Servem para monitorar o crescimento de raízes diminutas lançadas pelos vegetais para extrair o máximo de nutrientes no terreno pobre da amazônia.
A fim de desvendar o que se passa no submundo das microrraízes, algumas acabam levadas ao Inpa para análises enzimáticas. São quatro campanhas anuais de coleta, 720 amostras de cada vez, somando 2.880 por ano –fora as amostras de solo analisadas no mesmo laboratório.
O carbono estocado no terreno é monitorado com dispositivos de laboratório que identificam 315 moléculas orgânicas. A cada duas semanas são coletadas amostras para essa análise e medidas de CO2 e água no solo, a quatro profundidades (10 cm, 20 cm, 30 cm e 90 cm), no ponto de coleta mantido em cada um dos seis círculos, totalizando 24 registros.
“A experiência, a ideia, foi concebida por cientistas brasileiros”, ressalta Richard Betts, especialista em modelos computacionais para simular e prever o comportamento do clima na Terra. Ele coordena o Face pelo MetOffice e atua como professor na Universidade de Exeter.
“Ficamos entusiasmados com a oportunidade de testar no mundo real algumas das coisas que os modelos vinham sugerindo”, diz o britânico. “Sabíamos que uma das incertezas chave [na predição] de um colapso amazônico, na projeção de um ponto de não retorno [“tipping point”], era a resposta da floresta ao CO2 elevado.”
Betts se refere ao cenário em que o bioma amazônia deixa de ser um sumidouro para se tornar emissor de gases do efeito estufa e, assim, vir a agravar o aquecimento global em vez de contribuir para arrefecê-lo. A previsão indica a floresta úmida se transformando numa formação mais seca, talvez um cerrado (daí o nome “savanização” dado ao colapso, de início), com perda de carbono para a atmosfera.
De 280 ppm antes da revolução industrial, no século 18, a concentração de gás carbônico no ar subiu para 420 ppm com a queima de combustíveis fósseis, o desmatamento e a produção de fertilizantes e cimento. Como consequência, a temperatura média no planeta subiu cerca de 1,3°C desde então.
A partir dos anos 1980 se constatou que a amazônia retira CO2 da atmosfera sob influência do próprio aumento do gás carbônico. É o chamado efeito de fertilização por CO2: com maior disponibilidade desse insumo para fotossíntese, a produtividade avança e as árvores crescem, fixando mais carbono em troncos, folhas e raízes.
O galho é que essa fertilização por dióxido de carbono, embutido aliás nos modelos que simulam as interações entre floresta e atmosfera, está diminuindo. Um artigo de 2015 no periódico Nature, que teve Quesada entre as dezenas de autores, mostrou, com base no monitoramento de 321 áreas de mata amazônica, que a partir dos anos 2000 vem se desacelerando a taxa de captura de carbono pela vegetação.
E não é pouco o carbono retirado da atmosfera. De 1980 a 2005 a amazônia sorveu o equivalente à emissão anual de gases-estufa de todos os veículos da Terra, informa Quesada. Até ratear, o sumidouro também abatia todo o carbono emitido pelas nove nações amazônicas (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela).
Haverá um teto para essa captura de carbono, ora em desaceleração? Ela vai chegar a um máximo e estacionar em patamar elevado, ou a tendência vai se reverter e novas árvores recrutadas para crescimento começarão a morrer, como sugerem alguns estudos?
Seja por falta de espaço, luminosidade na floresta adensada ou nutrientes de estoque limitado no solo, como o fósforo, não parece crível que a floresta vá seguir crescendo para sempre. Mas ela pode atingir um novo equilíbrio sem colapsar, por exemplo intensificando a eficiência na absorção do pouco fósforo disponível por meio da simbiose com fungos nas raízes (micorrizas).
Algumas árvores também podem revelar-se mais resilientes ao aumento da temperatura e das estiagens causado pelo aquecimento. Com mais CO2 disponível, melhora a absorção do gás e as folhas podem fechar os estômatos por mais tempo, evitando a perda de água pela mesma abertura.
Diminuir a evapotranspiração, por outro lado, pode afetar outros processos vitais para o clima. As chuvas que caem sobre a amazônia, e mesmo as que dela são exportadas para outras regiões da América do Sul, resultam de reciclagem pela própria floresta. Se esses rios voadores falharem, o agronegócio e a geração de hidreletricidade enfrentarão dificuldades graves com o recuo da precipitação.
São enigmas assim que o AmazonFace se propõe solucionar. Conforme surgirem respostas sistêmicas robustas às perguntas, o que pode levar até cinco anos, os resultados permitirão refinar modelos de computador que buscam reproduzir e predizer o comportamento do clima planetário.
“Hipóteses são o que nós mais temos aqui”, diz Lapola. Hipóteses que vão em várias direções sobre o papel dos nutrientes em regular essa absorção e estocagem de carbono no ecossistema, uma vez que esses solos são pobres em fósforo, como em pelo menos 60% da amazônia.
Há experimentos similares ao AmazonFace em campos cultivados e florestas de outros países, como EUA, Reino Unido e Austrália. Nenhum numa mata tropical como a amazônica, com o tamanho avantajado das árvores desse bioma, o que exige pilastras de porte muito maior.
“Tem uma diversidade imensa aqui”, destaca o pesquisador da Unicamp. “Só dentro desses seis anéis tem quase 500 espécies de árvores. O mais provável, diferentemente dos outros experimentos Face, é que algumas vão se dar melhor, e outras, pior.”
Espera-se, assim, que mude a demografia vegetal, com favorecimento de alguns tipos de árvores. Com essa alteração virão outras, talvez na composição da fauna. Ninguém sabe que bicho vai dar.
O desmatamento e outras mudanças no uso da terra respondem pela maior parte das emissões do Brasil. Compromissos de redução assumidos pelo país contam com descontos permitidos pela captura de carbono nas florestas, sobretudo a amazônica. Na perspectiva de retrocesso na estocagem, os cálculos teriam de mudar, dificultando a realização das metas adotadas no Acordo de Paris (2015).
Os prejuízos nacionais, assim, iriam além de riscos à agropecuária e à geração hidrelétrica. “São questões de importância para a segurança nacional”, alerta Quesada.
É preciso saber com antecedência que impactos isso terá sobre a agricultura, maior fonte de recursos por exportação, pondera o pesquisador do Inpa. “Em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais já está faltando água. Imagina se fechar essa torneira na amazônia por conta desse aumento do CO2 atmosférico.”
“Dentre as iniciativas do MCTI para a agenda climática, o Face ocupa um protagonismo indiscutível”, afirma Márcio Rojas, coordenador de ciência do clima no ministério. A missão da pasta, diz, é primeiro avançar com a fronteira do conhecimento e, depois, colocar esse conhecimento à disposição dos tomadores de decisão.
“A informação que a gente vai gerar aqui é absolutamente relevante, não só para o Brasil, mas para o planeta. Não é à toa que esse experimento é considerado por muitos como provavelmente o projeto mais importante na agenda climática, hoje, em ciência.”
“Uma das questões chave para o mundo é quanto carbono teremos para emitir no futuro se quisermos ficar naquela meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a bem menos de 2 graus”, concorda Betts, do MetOffice. “Mas é claro que precisamos verificar isso no mundo real. E, sim, isso vai ficar muito difícil de lidar, porque não está parecendo nada bom até aqui.”




