RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O novo diretor-presidente da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), Wadih Damous, defende em entrevista à reportagem uma regulação em “mão dupla” dos planos de saúde.
Isso, segundo o advogado, significa mirar além do equilíbrio financeiro das empresas, com atenção também às demandas dos consumidores.
Damous diz que ainda pretende buscar mais informações, mas afirma que o lucro das operadoras nos últimos trimestres indica que o setor “aparentemente” vai bem.
“Não sou da área de finanças. Então, quero entender isso, porque ao mesmo tempo em que é um dos setores mais lucrativos da economia brasileira, também é o setor que mais chora prejuízo.”
Próximo do presidente Lula (PT), o advogado tomou posse em setembro, após deixar a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), ligada ao Ministério da Justiça.
Sua indicação para a ANS enfrentou resistências no Senado. Foi vista como a possibilidade de uma regulação mais rígida para as operadoras.
As empresas são alvos de reclamações de usuários devido aos cancelamentos e ao tamanho dos reajustes, especialmente dos planos coletivos, cujo teto de aumento não é definido pela ANS, como ocorre nos contratos individuais.
Já as operadoras costumam se queixar dos custos dos serviços com a incorporação de tecnologias em meio ao envelhecimento da população, que tende a elevar a demanda por atendimentos.
Damous afirma que a ANS tem muitas responsabilidades, mas enfrenta dificuldades, como a escassez de orçamento e servidores o quadro atual é de 711 concursados.
Ainda de acordo com o diretor-presidente, a agência tem de ouvir as demandas da sociedade e respondê-las em “linguagem de gente”. “Sou advogado. Sei o que é responder em juridiquês. Responder em juridiquês é desrespeitoso.”
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PERGUNTA – Qual será a prioridade do sr. na ANS?
WADIH DAMOUS – A prioridade imediata envolve a Unimed Ferj, operadora que herdou uma carteira da Unimed-Rio, que não vem dando conta dessa carteira e que interrompeu tratamentos por falta de pagamento aos prestadores, inclusive tratamento oncológico.
Gerou uma emergência, uma crise, logo na minha chegada. Já fui sentando na cadeira com esse abacaxi para resolver. É um abacaxi que não está resolvido ainda. Melhorou em partes, mas está longe de ser resolvido. A prioridade é chegar a um cenário em que a vida das pessoas não esteja em risco.
Agora, do ponto de vista estruturante, de gestão, digo que a prioridade é compor a agenda regulatória 2026-2028, e também aproveitar itens que considero importantes e válidos da agenda que está se encerrando [2023-2025]. Alguns desses itens tratam da vida real do setor.
Tratam de rescisão unilateral de contrato coletivo, de reajuste de contrato coletivo, de reembolso. Enfim, daquilo que efetivamente afeta os consumidores e que vem causando o cenário de conflituosidade.
É um setor muito conflituoso. Quero contribuir para que esse grau de conflituosidade seja reduzido, no mínimo, para patamares aceitáveis.
P – Consumidores reclamam do tamanho dos reajustes dos planos coletivos e de cancelamentos de contratos. Já as empresas costumam citar a busca por equilíbrio econômico-financeiro. É possível encontrar um caminho que agrade aos dois lados?
WD – Já se tornou uma espécie de mantra essa questão do equilíbrio econômico-financeiro. Ao longo do tempo, isso é vocalizado pelas operadoras. Só se pensa nas operadoras, mas e o equilíbrio de quem paga o plano de saúde?
Muitas vezes [a pessoa] despende 40%, 30%, do orçamento familiar para poder manter um plano. O equilíbrio financeiro tem que ser examinado, admitido, em mão dupla. É lá e cá.
Equilíbrio econômico-financeiro das operadoras? Perfeito. O regulador, papel que hoje exerço, não pode ingressar em aventuras regulatórias que põem em risco esse equilíbrio, mas, por outro lado, existe o equilíbrio econômico-financeiro do consumidor.
O consumidor muitas vezes é afetado e obrigado inclusive a largar o plano de saúde por conta dos reajustes dos preços. Equilíbrio é [para as] duas partes. Não é só uma. Vamos buscar o equilíbrio em mão dupla.
P – Como isso é possível?
WD – Aí volto à agenda regulatória. A agenda que está se encerrando já traz algumas questões que considero importantes e que quero apoiar.
No que diz respeito à rescisão unilateral, [é] começar a adotar determinadas medidas que dificultem a rescisão unilateral, a rescisão imotivada dos contratos coletivos, por parte das operadoras.
Vamos ser francos, como gosto de ser: essas rescisões se dão por seleção de riscos. É [para] limpar a carteira de idoso, de doente. É limpar a carteira que não dá lucro.
São questões sobre as quais temos que nos debruçar, porque são questões que geram crise, animosidade, e não precisa chegar a tanto. Saúde é vida ou morte, dependendo da circunstância.
Se você tem um tratamento oncológico interrompido, está falando de morte. Não se trata de uma relação de consumo qualquer.
P – Dados da ANS mostram que os planos de saúde médico-hospitalares fecharam o 1º semestre com lucro operacional de R$ 6,3 bilhões, uma alta de 157%. O que os números positivos indicam?
WD – Aparentemente, demonstram que o setor vai muito bem. Aparentemente. Não sou da área de finanças. Então, quero entender isso, porque ao mesmo tempo em que é um dos setores mais lucrativos da economia brasileira, também é o setor que mais chora prejuízo.
Toda vez que vai se regular esse ou aquele aspecto ligado a contratos de planos de saúde, vem a questão da ameaça ao equilíbrio econômico-financeiro.
Como não sou especialista, e temos um corpo técnico muito qualificado, quero entender como é que um setor que lucra tanto, que tem lucro operacional, que tem lucro financeiro expressivo, sempre se sente ameaçado ou sempre alega que está ameaçado.
Quero entender tecnicamente para não falar bobagem. Por que isso muitas vezes não repercute no preço dos planos em favor dos consumidores?
Posso chegar a uma conclusão, após estar seguro do exame desses dados, que de fato não dá, que tem que ser assim como é hoje. Mas, como ainda não tenho essa segurança, fico desconfiado. Quero acabar com essa desconfiança.
P – A indicação do sr. para a ANS enfrentou resistências no Senado. Como avalia isso?
WD – Tenho de fato uma trajetória na vida pública que pode causar, e parece que causou, certa apreensão do setor empresarial. Na Senacon, também foi assim. Não é só o fato de eu ter passado pela secretaria. É o fato de ter um olhar compreensível para os seres humanos.
Quem contrata um plano de saúde são cidadãos e cidadãs que no final das contas são seres humanos, que querem uma segurança, já que também entendem que o SUS, infelizmente subfinanciado, não tem condições de arcar.
Considero o SUS um patrimônio do povo brasileiro, um motivo de orgulho. Mas temos que reconhecer que o SUS ainda tem percalço que faz com que as pessoas sejam induzidas a adquirir planos de saúde.
Quando vem alguém que olha para esse lado e que não olha só para as empresas, explica por que houve essa resistência. Acho absolutamente natural que tenha havido. Não me incomoda.
Vou cumprir meu mandato com essa perspectiva. Os contratos de planos de saúde não envolvem só uma parte. Envolvem duas partes, e uma é ultra-vulnerável. Temos que olhar para essa outra parte também.
P – Dá para esperar, então, uma atuação da ANS mais rígida em relação às operadoras? Ou não?
WD – A ANS partiu de uma espécie de marco zero da regulação. Por que digo isso? Em outros setores que hoje são regulados por agências regulatórias, já existia uma espécie de regulação.
A ANS foi construindo um acervo normativo muito importante. Toda vez que a ANS regulou, melhorando as condições contratuais dos consumidores, o setor regulado dizia que era uma regulação rígida.
Então, não vou dizer: Vamos regular com rigor. Nós vamos regular com justiça. A direção [da agência] é colegiada. A ANS não é um órgão presidencialista. Posso ser voto vencido, por exemplo. Quero que a ANS regule, como vem fazendo ao longo da sua trajetória, com justiça.
P – Em 2024, uma reportagem da Folha, com base em dados da ANS, informou que a agência somava dívidas e pagamentos em atraso da ordem de R$ 16 milhões. Qual é o quadro que o sr. encontrou?
WD – Confesso que não li essa matéria do ano passado. Nem vou confirmar o montante das dívidas, ainda estou tomando pé dessa situação. Mas posso afirmar que a agência tem, sim, dificuldades. O orçamento de 2026 é o mesmo de 2010. Não há quem possa funcionar a contento assim.
A ANS tem muitas responsabilidades, muitas atribuições. Embora tenha corpo técnico funcional qualificado, em termos quantitativos, é insuficiente.
P – Em agosto, os planos de saúde individuais, que têm reajuste máximo definido pela ANS, representavam em torno de 16% do mercado. É possível aumentar essa participação?
WD – A pergunta, de certa forma, já contém a resposta. Se você resolver contratar um plano individual, não vai conseguir. Não tem oferta. Isso se deve exatamente ao fato de os planos individuais serem regulados [no teto de reajuste]. O coletivo não é.
Não temos como baixar uma norma obrigando as empresas a comercializarem planos individuais. Isso é outra coisa que não consigo entender, e também vou pedir subsídios técnicos.
Ora, se as empresas oferecessem planos individuais, provavelmente haveria uma grande adesão. Será que isso não se traduz em lucro pela quantidade de pessoas? Queria entender direito essa concepção de que plano individual é sinônimo de prejuízo.
É claro que estou disposto, em diálogo com as operadoras, a procurar saber exatamente por que os planos individuais não são mais ofertados, mas com demonstração, não só com retórica.
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RAIO-X | Wadih Damous, 69
É diretor-presidente da ANS. Advogado, foi presidente da OAB no Rio de Janeiro, deputado federal e Secretário Nacional do Consumidor no governo Lula (PT).




