RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – As dezenas de corpos enfileirados na praça São Lucas são uma referência direta à cena semelhante à registrada na entrada de Vigário Geral em 1993.

A diferença entre os dois cenários é que as 21 mortes há 30 anos foram resultados de uma chacina com vítimas aleatórias provocada por policiais numa ação clandestina motivada por vingança após a morte de agentes.

O desfile macabro desta quarta-feira (29) é resultado de uma operação planejada pela gestão Cláudio Castro (PL), com mais de uma centena de mortos numa contabilidade ainda incerta em circunstâncias a serem esclarecidas.

Os próximos dias serão consumidos pelo que atualmente convencionou-se chamar de guerra de narrativas. Entidades de direitos humanos e familiares apontarão violações e execuções sumárias. O governo alegará estar em guerra contra uma facção terrorista, o Comando Vermelho, da qual os mortos seriam integrantes.

Para além das necessárias investigações, cabe refletir sobre o tempo que se passou entre as duas imagens, apesar das diferenças dos casos.

Em 1993, completava quatro anos da apreensão do primeiro fuzil no Rio de Janeiro, em 1989. “É absolutamente intolerável”, disse o então governador Moreira Franco. Nesta terça (28), foram quase 100 apreendidos, segundo o governo estadual.

Dois anos depois, o governador Marcello Alencar instituiu a chamada “gratificação faroeste”, que premiava ações de bravura dos policiais –o que na prática significava matar mais. Ela foi revogada em 1998 pela Assembleia Legislativa. Neste ano, os deputados estaduais aprovaram o retorno da premiação de forma mais explícita, oferecendo benefícios para agentes que “neutralizassem” bandidos –eufemismo para morte. A iniciativa foi vetada por Castro.

Desde 1992, o Rio de Janeiro foi objeto de 20 decretos de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) da Presidência da República para reforço na segurança. Após a operação desta terça (28), discute-se o 21º.

Foi também a partir de 1993 que o Rio de Janeiro passou a construir sua primeira candidatura para sediar as Olimpíadas, de 2004. O objetivo era justamente usar os Jogos para melhorar a infraestrutura, se firmar como uma cidade global e atrair investimentos a partir de uma nova imagem, diferente das dos corpos que apareciam nas ruas de Vigário Geral, da Candelária e em tantos outros lugares.

O projeto olímpico mobilizou governos e a população por duas décadas. O COI (Comitê Olímpico Internacional) escolheu a cidade como sede dos Jogos de 2016 em outubro de 2009. Naquele ano as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) floresciam, criando imagens de policiais sorridentes cumprimentando moradores e crianças das favelas onde trabalhavam.

O projeto de ocupação permanente das favelas pela polícia teve seu ápice de ilusão no mesmo Complexo do Alemão, em 2010, quando dezenas de criminosos fugiram pela mesma mata em que muitos foram mortos nesta terça (28).

O projeto das UPPs acabou sem conseguir ganhar escala, as Olimpíadas ocorreram sem grandes transtornos, mas com um legado discutível. Os corpos, nesta quarta, voltaram a ficar enfileirados na rua.

Há 30 anos, os corpos foram enfileirados após sugestão do sociólogo e poeta Caio Ferraz, que queria impedir que os cadáveres fossem levados pelos bombeiros antes de serem identificados e, em suas palavras, mostrar que ninguém era bandido.

Nesta quarta, o ativista Raull Santiago afirmou que a exposição dos corpos do Complexo do Alemão foi um pedido dos familiares, para mostrar o estado em que as pessoas foram encontradas.

As circunstâncias da chacina de Vigário com a do Complexo do Alemão, que provocaram imagens semelhantes, são diferentes. Mas cabe refletir sobre a cidade e seus políticos que, três décadas depois, foram incapazes de desfazer o ambiente violento que produz fileira de cadáveres num velório a céu aberto.